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1 Samuel 17 apresenta uma das histórias mais conhecidas da Bíblia: Davi versus Golias. O contexto deste capítulo, entretanto, começa bem antes, praticamente na unção de Saul como rei. Desde o início de seu reinado, Saul teve problemas com os filisteus e parece nunca os haver derrotado, aliás, uma das marcas de Saul: nunca derrotar o inimigo completamente (1 Samuel 15 é um bom exemplo disto).

Aqui, em mais um enfrentamento de Israel com os filisteus, o narrador faz questão de descrever o cenário, dando uma série de referências geográficas e topográficas (1 Samuel 17:1-3). Também introduz o personagem Golias com riqueza de detalhes. O primeiro detalhe, e o mais importante também, é que Golias era de Gate (1 Samuel 17:4). A procedência deste homem nos remete a Josué 11:21-23, quando o povo guerreou contra os gigantes (os famosos anaquins) e os venceu, restando apenas alguns deles em 3 cidades: Gaza, Asdode e Gate. A própria referência aos gigantes nos faz lembrar de Números 13, quando Moisés envia espias à terra de Canaã que, por ocasião de seu retorno, deram o relato de que gigantes habitavam a terra (Números 13:25-28, 31-33), motivo pelo qual se amedrontaram e até queriam voltar ao Egito ou morrer no deserto (Números 14:1-4). Ou seja: Golias, de Gate, é a memória de dois eventos passados; o primeiro de medo e pecado (Números 13 e 14); o segundo de vitória (Josué 11). Isto se torna mais impactante porque o texto nos diz que este gigante desafiava o povo de Israel, duas vezes ao dia, por 40 dias (1 Samuel 17:16).

Aqui, em 1 Samuel 17, Golias está vestindo uma armadura de mais ou menos 60 kg, toda de bronze com uma enorme lança, também pesada, além da espada. Com seus cerca de 2,5m de altura, Golias não é apenas visualmente intimidador, mas também um guerreiro experiente e reconhecido (1 Samuel 17:33). O desafio de Golias é enfrentar apenas um homem e resolver a guerra pelo combate direto (1 Samuel 17:8-11), o que aumentava ainda mais o medo das tropas israelitas.

Davi surge na narrativa exatamente depois desta afronta inicial. Sua aparição é um indicativo também de sua possível idade, já que apenas 3 filhos de Jessé estão servindo no exército, ou seja, estão acima de 20 anos (Números 26, entre outros). Como Davi é o sétimo filho e ainda há outros 3 que não foram para a guerra, é razoável concluir que Davi era realmente um adolescente.

Dois detalhes do aparecimento de Davi chamam à atenção. O primeiro é que Davi já havia sido apresentado em dois outros momentos: em 1 Samuel 16:11-13, quando é ungido rei de Israel por Samuel e em 1 Samuel 16:17-23, quando Saul clama por alguém que lhe sossegasse o espírito e um jovem músico lhe é recomendado. Nestas duas aparições uma série de características do jovem Davi são apresentadas, tanto fisicamente (1 Samuel 16:12) quanto de sua índole (1 Samuel 16:18). No segundo momento, a apresentação de Davi sequer menciona a primeira. E em 1 Samuel 17:12-16, em sua terceira apresentação, as duas anteriores também são ignoradas. O narrador parece fazer isso propositadamente para criar uma expectativa a mais no leitor, um suspense.

O segundo detalhe que chama à atenção é que em 1 Sm 17:26 temos a primeira fala de Davi: “Que farão àquele homem que ferir este filisteu e tirar a afronta de sobre Israel? Quem é, pois, esse incircunciso filisteu, para afrontar os exércitos do DEUS vivo?”. A primeira pergunta é redundante, pois no verso imediatamente anterior, 1 Samuel 17:25, a resposta já havia sido dada, como 1 Samuel 17:30 parece explicar: “e o povo lhe tornou a responder como dantes.” O que isto quer dizer? Parece sugerir que Davi usa de retórica para tentar animar o povo. Com oferta tão alta, como ninguém ainda tentou? A segunda pergunta é, novamente, um resgate da memória, pois lembra a confiança de Josué e Calebe em Números 13:3-14, no episódio dos espias.

O desafio, em ambos os casos –Números 13 e 1 Samuel 17– não parece ser tanto o inimigo a ser vencido. Josué, Calebe e Davi têm certeza que DEUS já lhes garantiu vitória. O desafio é se levantar sozinho no meio do próprio povo de DEUS e lembrar que é ELE quem luta e vence e que a nós basta sermos instrumentos e colocarmo-nos à Sua disposição. O adolescente Davi não clama para si a vitória, mas lembra o povo (e os inimigos) que é DEUS quem luta e é DEUS quem vence: “O Senhor me livrou das garras do leão e das do urso; Ele me livrará das mãos desse filisteu.” (1 Samuel 17:37); “Tu vens contra mim contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do Senhor dos exércitos de Israel […]. Hoje mesmo o Senhor te entregará nas minhas mãos […].” (1 Samuel 17:45-46).