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Sobre o próprio texto do Decálogo, uma série de nuances valem ser ressaltadas: primeiro, de aspectos gerais e, depois, específicos. Em primeiro lugar, o Decálogo não é parecido com as prescrições habituais da lei bíblica, até por não especificar as punições. É, inclusive, a forma de categóricos imperativos e proibições apodícticas dos mandamentos em Êxodo 20:3-17 mais um fator de relação com as formulações dos tratados de aliança do AOM (Antigo Oriente Médio).

Além disto, o fato de não apresentarem caráter casuístico demonstra serem uma espécie de padrão conceitual de conduta, ou seja, o objetivo é o bem-estar da comunidade e a motivação é positiva (a obediência a DEUS, o DEUS que libertou) e não negativa (a punição).

O texto do Decálogo começa com a expressão “teu DEUS” em Êxodo 20:2 e termina com “teu vizinho” em Êxodo 20:17. Esta, inclusive, parece ser a divisão que se tem adotado ao tratar do Decálogo: uma primeira parte se prende a ordens direcionadas ao relacionamento entre DEUS e o homem e a segunda parte se constitui de ordens direcionadas ao relacionamento entre os homens. Quanto à divisão destas duas seções, alguns consideram que os quatro primeiros mandamentos estão direcionados a DEUS e os seis últimos ao próximo. Outros sugerem que os três primeiros se orientam a DEUS e os sete últimos ao próximo.

A divisão interna do texto, entretanto, parece sugerir uma linha de forte coesão textual. O uso das expressões “teu DEUS” e “teu próximo” como fatores de divisão parecem indicar isto, visto que “teu DEUS” aparece cinco vezes nas cinco primeiras palavras do Decálogo, e “teu vizinho” aparece apenas quatro vezes somente nos dois últimos mandamentos (três no último e uma no penúltimo). Há ainda, referência a DEUS nos primeiros cinco mandamentos e o nome de DEUS não é mencionado nenhuma vez nos cinco últimos.

O uso da partícula negativa “não” também é importante ao apontar uma estrutura coesa. A referida partícula aparece seis vezes nos primeiros três mandamentos; uma vez no quarto mandamento (Êxodo 20:10); nenhuma vez no quinto; quatro vezes do sexto ao nono (uma vez em cada um); e duas vezes no décimo mandamento. Ou seja: temos 13 “nãos” divididos ao longo do texto; seis antes do mandamento do Shabbat e seis depois, com um “não” central no Shabbat. Isto também realça o único mandamento completamente positivo, o quinto, que é também o único atrelado ao qual há uma promessa.

A seção do quarto mandamento (Êxodo 20:8-11), que é a mais longa (mais ou menos 55 palavras), parece fazer clara referência aos dois tipos de relação que resumiriam o Decálogo: DEUS-homem e homem-homem. Ele funcionaria, então como uma ligação entre as duas seções, pertencendo ao mesmo tempo às duas.

Conclui-se, portanto, que a divisão do Decálogo em 3+7 ou 4+6 parece ser mais temática do que propriamente textual e que a unidade literária de Êxodo 20:2-17 é indivisível, o que significa que não é possível, pela estrutura do texto, determinar divisão. Martin Buber assinala isto dizendo: “Se eles forem considerados em sua conexão, será observado que não há algo como campos separados aqui, mas somente um indiferenciado campo de vida comum, o qual requer uma constituição contendo elementos religiosos e éticos para atingir crescimento uniforme.”

Provavelmente é neste contexto de indivisibilidade dos mandamentos que a frase bíblica lapidar de Tiago parece fazer pleno sentido: “Pois qualquer que guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, se torna culpado de todos” (Tiago 2:10).

Dentro desta unidade conceitual e literária do Decálogo, uma inovação importante tem destaque: as obrigações do homem para com seu igual são colocadas em nível de igualdade com os deveres dele para com seu DEUS. A intenção seria estabelecer que “toda a vida deve ser devotada ao Senhor da aliança” (Brueggemann), o que quer dizer que todas as esferas da existência humana se relacionam com o DEUS que liberta Israel do Egito. O Decálogo é a implementação da justiça divina na vida diária de Seu povo.