Há muito o texto de Êxodo 20 (e Deuteronômio 5) é arrolado como similar aos tratados de suserania do Antigo Oriente Médio, em especial aos tratados políticos Hititas. Esta similaridade se dá pela presença de seções comuns no processo de se regular a relação entre entidades diferentes; no caso dos tratados políticos, entre o suserano e o vassalo; no caso bíblico, DEUS e o povo.
Teólogos diversos apontam, inclusive, para a inovação desta situação no que se refere à religião, visto que o mais comum no Antigo Oriente Médio (AOM) era mostrar o relacionamento entre a divindade e o homem comum através de um conjunto de intermediários, enquanto no caso bíblico, DEUS estabelece, diretamente, um relacionamento com o povo que Ele escolheu.
Aliás, o próprio texto bíblico se refere a Êxodo 20:2-17 com a ideia de aliança, pois temos em Êxodo 34:28 a expressão “palavras da aliança, as dez palavras” (tradução literal do hebraico). E assim ficou conhecido o texto, tanto que os judeus de Alexandria, no Egito, traduziram para o grego como deka logoi, ou seja, decálogo.
Outros fatores no próprio texto apontam para sua singularidade. Por exemplo, em Êxodo 20:1 temos uma construção hebraica única no Pentateuco: “E disse DEUS todas estas palavras, dizendo […]”. Ela é única, pois seu endereço é indeterminado, o que quer dizer que não é indicado a quem DEUS fala. São as únicas palavras, no Pentateuco, ditas por Ele sem a intermediação de Moisés ou quaisquer outras pessoas.
Isto assinala um viés universal, pois a indeterminação do discurso faz com que o mesmo seja estendido a todos. Ao mesmo tempo, a mesma indeterminação também individualiza a mensagem divina, já que cada um se sentiria depositário da fala vinda do alto do Sinai. Por outro lado, o próprio uso consistente, por todo o texto de Êxodo 20:2-17, de terminação pronominal de segunda pessoa do singular ao se falar ao povo indica um caráter individual/coletivo do Decálogo que deveria ser mais bem explorado.
Há também o fato de que esta é a única declaração dada de maneira direta por DEUS ao Seu povo –no Pentateuco– e depois disto, nenhuma outra lei ou orientação será dada em um discurso direto. Deste modo, fica claro que a construção inicial desta fala direta é uma espécie de manifesto de DEUS, de Sua identidade. E é um discurso claramente distinto do restante, o que indica o lugar especial que Êxodo 20:1-17 ocupa no corpus bíblico.
A primeira declaração define também o contexto histórico, primeiramente pelo conteúdo direto dela e, depois, por sua colocação dentro do livro de Êxodo.
Ao dizer “Eu sou YHWH, teu DEUS, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”, Ele estabelece ao povo Sua identidade sob a base ativa do Êxodo, da libertação. O DEUS que está se pronunciando é o libertador. Mas este DEUS não é apenas o libertador; é também quem enviou uma série de pragas sobre os egípcios, opressores, mas protegeu os israelitas (Êxodo 7:14 – 12:36), que abriu o mar (Êxodo 14:15-22), que transformou águas amargas em doces (Êxodo 15:22-27), que enviou maná do céu (Êxodo 16), que fez água sair da rocha (Êxodo 17:1-7), que deu a Israel vitória sobre Amaleque (Êxodo 17:8-16) e se manifestou no Sinai, com trovões, relâmpagos e barulho como de trombeta (Êxodo 19). Quer dizer, a fundamentação histórica –direta (o Êxodo) e a indireta (os milagres associados ao Êxodo) – do discurso divino, apontava para a salvação já provida:
“O Decálogo é a instrução de um Redentor para Seu povo da aliança. Os Dez Mandamentos foram dados pelo DEUS Salvador de Israel que havia acabado de os livrar da escravidão.” (LARONDELLE, 2005, p. 36)
Este contexto histórico e literário é relevante pois coloca o texto de Êxodo 20:1-17 dentro de uma perspectiva teológica única. Quer dizer, como parte integrante do texto do Decálogo, a declaração inicial coloca a sequência do texto sob o prisma da novidade da liberdade.
As palavras do Sinai estão arraigadas na liberdade provida por DEUS. O contexto de Êxodo 20:1-17, que é o contexto da aliança entre DEUS e Israel, se encontra construído sobre a liberdade recém adquirida do povo. A aliança, a lei é, portanto, uma resposta à liberdade e, ao mesmo tempo, uma resposta à escravidão. É neste sentido, de liberdade e de oposição à escravidão, que o Decálogo é pronunciado: os mandamentos são liberdade. Portanto, parafraseando Heschel, ser livre é obedecer os mandamentos de DEUS, ou ainda: “a liberdade está em obedecer.”