Um anúncio de enredo interessante na Bíblia Hebraica ocorre em 2 Reis 17. Neste capítulo o narrador apresenta a queda do Reino do Norte, Israel[1], diante de Salmaneser, rei dos assírios (2 Reis 17:3-6). Em seguida, o narrador discursa a respeito das causas desta derrocada e lista a adoração de ídolos, a rejeição dos mandamentos, a surdez em face aos apelos dos profetas enviados por Deus, etc. (2 Reis 17:7-23). O anúncio de enredo curioso aparece em 2 Reis 17:19, pois em meio à descrição dos pecados do Reino do Norte, Judá é citado como estando no mesmo caminho e fazendo as mesmas coisas. Ou seja, há uma antevisão do que vai acontecer também com o Reino do Sul, Judá. Espera-se, portanto, que a narrativa do próximo capítulo descreva de que maneira este anúncio do pecado e a consequente destruição de Judá se dará. Mas 2 Reis 18 começa contando a história do rei Ezequias.
Na primeira seção da história de Ezequias (2 Reis 18:1-19:37), o rei é introduzido da maneira mais favorável possível: “fez o que era reto perante o SENHOR, segundo tudo o que fizera Davi, seu pai.” (2 Reis 18:3); “Confiou no SENHOR, DEUS de Israel, de maneira que depois dele não houve seu semelhante entre todos os reis de Judá, nem entre os que foram antes dele.” (2 Reis 18:5). Na verdade, a primeira construção linguística aparece em 2 Reis 22:2 se referindo também a Josias e a segunda construção aparece se referindo a Salomão em 1 Reis 13:12. O uso das duas frases acaba por conectar Ezequias a estes dois reis e, obviamente, a menção a Davi também o conecta a este.
O texto de 2 Crônicas 29 e 30 aponta todas as reformas que Ezquias fez, restabelecendo o culto a DEUS. Entre estas reformas, uma é especial: a celebração da Páscoa. Ele reúne todo o povo, de todos os cantos, e comemora a festa de acordo com os preceitos bíblicos e o narrador conclui: “Houve grande alegria em Jerusalém; porque desde os dias de Salomão, filho de Davi, não houve coisa semelhante em Jerusalém.” (2 Crônicas 30:26).
O reinado de Ezequias vai coincidir com um momento de grande tensão com os assírios, no décimo quarto ano do seu reinado. Os assírios, os mesmos que destruíram o Reino do Norte, agora liderados por Senaqueribe, invadem Judá e cercam a cidade de Jerusalém (1 Reis 18:13-18). Senaqueribe envia um mensageiro real a Ezequias e ao povo de Judá, trazendo uma mensagem que pode ser dividida em dois pontos que se repetem por duas vezes: a.1) não confiem no Egito (18:19-21); b.1) não confiem em DEUS ou em Ezequias (18:22); a.2) não confiem no Egito (18:23-25); b.2) não confiem em DEUS ou em Ezequias (18:29-30). A partir daí a mensagem fica diretamente endereçada a Ezequias e sua confiança em DEUS: DEUS não pode livrar Judá das mãos dos assírios e, na verdade, é a Assíria que é a terra onde mana leite e mel, portanto, o povo deve se render e esquecer Ezequias e o próprio DEUS (2 Reis 18:31-35).
Ezequias rasga suas vestes, vai até o Templo coberto de pano de saco para orar e envia mensageiros a Isaías contando o que havia acontecido (2 Rs. 19:1-3). A mensagem de Ezequias ao profeta foca nos insultos de Rabsaqué, mensageiro assírio, a DEUS e não a ele próprio ou a Israel: “Porventura, o SENHOR, teu DEUS, terá ouvido todas as palavras de Rabsaqué, a quem o rei da Assíria, seu senhor, enviou para afrontar o DEUS vivo, e repreenderá as palavras que ouviu; ergue, pois, orações pelos que ainda subsistem.” (2 Reis 19:4). Isaías assegura Ezequias de que DEUS vai resolver a situação, mas Rabsaqué volta a fazer provoções em forma de uma carta/mensagem de Senaqueribe em que o rei assírio desafia o poder de DEUS de maneira acintosa (2 Reis 19:8-13).
A primeira reação de Ezequias é a mesma de antes: ele sobe ao Templo para orar e leva a carta de ameaças junto consigo. Sua oração, como a mensagem que ele envia ao profeta antes, é novamente focada na preservação do nome de DEUS e não na própria proteção de Judá. Suas palavras são relevantes: “Tendo Ezequias recebido a carta das mãos dos mensageiros, leu-a; então, subiu à Casa do SENHOR, estendeu-a perante o Senhor e orou perante o Senhor, dizendo: Ó SENHOR, Deus de Israel, que estás entronizado acima dos querubins, tu somente és o DEUS de todos os reinos da terra; tu fizeste os céus e a terra. Inclina, ó SENHOR, o ouvido e ouve; abre, SENHOR, os olhos e vê; ouve todas as palavras de Senaqueribe, as quais ele enviou para afrontar o DEUS vivo. Verdade é, SENHOR, que os reis da Assíria assolaram todas as nações e suas terras e lançaram no fogo os deuses deles, porque deuses não eram, senão obra de mãos de homens, madeira e pedra; por isso, os destruíram. Agora, pois, ó SENHOR, nosso DEUS, livra-nos das suas mãos, para que todos os reinos da terra saibam que só tu és o SENHOR DEUS.” (2 Reis 19:14-19).
As ligações com outras importantes orações bíblicas são interessantes (2 Reis 19:16 e Daniel 9:18, por exemplo), porque o foco não está nas necessidades de Judá, mas no testemunho que os insolentes assírios e as outras nações teriam mediante a manifestação do DEUS de Israel! Apesar da promessa profética de que os assírios seriam derrotados, Ezequias parece não suportar as constantes blasfêmias e zombarias das quais o Eterno, através das declarações assírias, se tornara vítima.
DEUS conforta Ezequias através de Isaías, com palavras de juízo contra os assírios e Senaqueribe, seu rei (2 Reis 19:20-34), mas o interessante é a aparente tonalidade do discurso: calma, na hora certa EU irei resolver.
A primeira seção termina de maneira fantástica: “Então, naquela mesma noite, saiu o Anjo do SENHOR e feriu, no arraial dos assírios, cento e oitenta e cinco mil; e, quando se levantaram os restantes pela manhã, eis que todos estes eram cadáveres.” (2 Reis 19:35). O rei que celebrou a Páscoa com Judá depois de tanto tempo, que trouxe todos os habitantes para a festa e a comemorou como nos tempos de Salomão, acaba revivendo uma nova Páscoa: como na original (Êxodo 11:4-5; 12:12; 12:29), o SENHOR, de noite, fere àqueles que queriam destruir Seu povo. Senaqueribe, como profetizado por Isaías, morre nas mãos dos seus filhos e Judá fica livre da ameaça assíria naqueles dias.
Dentre as diversas coisas interessantes desta história, a reação de Ezequias é notável. A confrontação, as blasfêmias, as mentiras, o discurso ameaçador e questionador dos assírios não é respondido. De fato, Ezequias ordena ao povo que fique quieto (2 Reis 18:36). Ele se cala em público, mas abre seus lábios em oração.
O ataque público não precisa ser respondido publicamente. Ele é respondido no lugar no único lugar em que há solução: diante do trono de DEUS, em oração. Ele não é respondido com ações contra os assírios, mas com uma ação em direção ao ETERNO, em oração.
A religião da ação contra, das respostas em defesa daquELE que não precisa de defesa, da violência nas palavras e ações, não é a religião bíblica. Ezequias, o rei de confiança inigualável em DEUS, segundo o relato bíblico, aponta um caminho simples e efetivo: a oração.
[1] Israel, depois do reinado de Salomão, foi dividido em dois, 10 tribos ao norte, que mantiveram o nome Israel e 2 tribos ao sul, com o nome de Judá (1 Reis 11)