#77

“eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?”

Gênesis 22:7

A história do Akedah, do amarramento de Isaque, é uma das narrativas mais conhecidas e interpretadas da Bíblia. A história, em si mesma, pode ser atestada de diferentes maneiras nas três grandes religiões mundiais: Judaísmo, Islamismo, e Cristianismo.

Na versão da Bíblia Hebraica, Abraão, provado por DEUS, é convocado a sacrificar seu próprio filho. Ele viaja três dias até o monte Moriá, sobe a montanha com seu filho, prepara o sacrifício, porém é impedido de sacrificá-lo por uma voz divina. Por fim, no lugar de seu filho Isaque, sacrifica um carneiro preso com seus chifres num mato. O capítulo encerra com a reafirmação da aliança.

Teólogos deliberaram por centenas de anos acerca do ponto central da história. Muitos argumentam que o ponto está, mais uma vez, na fé de Abraão que mesmo ao final de sua vida ainda está disposto –como no seu primeiro chamado em Gênesis 12– a ir aonde Deus mandaria. Outros porém, entendem que o ápice do texto se encontra no fim, na manifestação visível da obediência de Abraão ou no aparecimento do sacrifício substituto.

De fato, o pedido de DEUS no começo do capítulo é significativo, justamente porque não soa divino. O pedido de que um ser humano seja sacrificado em nada parece ter relação com o DEUS da aliança, que cria e zela pela vida humana. Soa mais como uma demanda dos deuses das nações ao redor de Abraão. Ele, no entanto, faz o que a voz diz. A voz lhe é familiar. O pedido soa estranho, mas a voz é familiar, as palavras são familiares. Semelhantemente ao primeiro chamado, registrado no capítulo 12, para “ir” (e nesta “ida” abandonar seu passado), agora, no capítulo 22, ao receber o pedido de “ir” para a terra de Moriá (desta vez abandonando seu futuro, sua descendência), Abraão vai, sem questionar. No capítulo 12 como no capítulo 22 o chamado é acompanhado do pedido lech-lecha: “vá”. O pedido é estranho, mas as palavras e a voz são familiares.

Ao mesmo tempo, o fim do capítulo parece ser o ápice de toda a história. Abraão obedece, a voz de DEUS é ouvida mais uma vez, um carneiro (não o esperado cordeiro!) aparece para tomar o lugar de Isaque no altar, e a aliança é reforçada.

Sendo o começo e o fim pontos importantes desta história, o centro do texto muitas vezes é deixado um pouco de lado. É tratado como apenas um meio que leva ao fim ou o resultado de um glorioso começo. A palavra amar no Hebraico ou “dizer” aparece um total de 17 vezes no capítulo. 6 vezes antes e 6 vezes depois do verso 7-8. No verso 7-8 (diálogo entre Abraão e Isaque na subida ao Moriá) o verbo aparece um total de 5 vezes. Esta ênfase mostra, de alguma maneira, como talvez existe algo neste ponto da história que é importante para a compreensão dela. Sim: a fé de Abraão ao sair no começo da história e a validação final da fé no fim da história são importantes; mas muitas vezes o ponto central de uma história se encontra no lugar mais improvável e incomum.

É possível que o centro de toda a narrativa esteja aqui: Isaque vê a lenha e vê o fogo, mas não vê o sacrifício. No silêncio da pergunta sem resposta, Abraão responde com a certeza do incerto: DEUS proverá para si o sacrifício. A encarnação de todo o mistério da religião: não temos nada diante de nós além da completa confiança de que DEUS irá agir.

Tão importante quanto o ato de fé e tão importante quanto a providência Divina é como lidamos com as perguntas sem resposta, como enfrentamos o silêncio após o ato de fé e como convivemos com a ansiedade antes da resolução final.