“E o verbo se fez carne e habitou entre nós […]” João 1:14
Tratando de fenômenos linguísticos, uma das alegações medulares do filósofo e linguista Mikhail Bakhtin é o dialogismo. Qualquer texto é parte integrante de seu ambiente dialógico. Fundamentada nestes conceitos, Julia Kristeva, crítica literária búlgaro-francesa, estreitou estas relações entre textos dando ênfase a um fenômeno que chamou de intertextualidade. Basicamente, ela afirma que todos os textos evocam intertextos. Como por exemplo, neste trecho da música de Chico Buarque “Bom Conselho”, onde vemos eco a alguns ditos populares: “Ouça um bom conselho/Que eu lhe dou de graça/Inútil é dormir que a dor não passa/Espere sentado/Ou você se cansa/Está provado, quem espera nunca alcança”(1).
Curioso é que quando vamos ao texto bíblico e o analisamos em sua forma final, há ali nitidamente inúmeros casos de intertextualidade; às vezes explícita, outras vezes implícita.
Explicitamente ela aparece, por exemplo, em Mateus 1:22-23, quando é dito: “Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo intermédio do profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel”. Uma explícita referência a Isaías 7:14.
E em outros casos, de forma mais implícita, como por exemplo, o mencionado aqui no texto #55, na relação entre Jeremias 29 e as leis quanto à guerra de Deuteronômio 20:5-10, dando a ideia de que o povo deveria aceitar o jugo Babilônico não se unindo para uma revolta.
Além disso, algumas vezes o texto bíblico pode se relacionar com estruturas e textos fora do cânon, como por exemplo, no contexto da aliança, a relação entre o padrão estrutural dos Tratados Hititas e porções de Deuteronômio em que aparece a sequência dos elementos básicos: (i) preâmbulo identificando as partes; (ii) prólogo histórico pontuando o relacionamento passado entre estas partes; (iii) estipulações impostas sobre a parte inferior ou compartilhada por ambas as partes; (iv) provisões para um depósito e uma consulta ou leitura segura do documento do tratado; (v) lista dos deuses e outras testemunhas do tratado; e (vi) bênçãos e maldições. Mas por que razão isto ocorre?
Abraham Joshua Heschel, afirma(2): “Algumas pessoas podem perguntar: Por que a luz de DEUS foi oferecida em forma de linguagem? Como é concebível que o divino esteja contido em vasos tão frágeis como consoantes e vogais? Esta pergunta revela o pecado de nossa era: tratar de forma superficial o meio que transporta as ondas de luz do Espírito. O que mais no mundo é capaz de unir os homens através das distâncias do tempo e do espaço? De todas as coisas terrestres, as palavras são as que nunca morrem.”
DEUS, em Sua sabedoria, traduz ao ser humano suas intenções através desta dupla autoria do texto bíblico. A palavra bíblica, de certa forma, funciona como uma encarnação.
Assim, a Palavra está em paralelo direto com a maior de todas as revelações da história bíblica, a revelação de Jesus, um ser divino e humano. O Verbo, desta vez, se fez carne, e habitou entre nós.
(1) “se conselho fosse bom, dava-se de graça”; “dorme que a dor passa”; “quem espera, sempre alcança”; etc.
(2) God in Search of Man. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1955, p. 244.