#67

Há uma espécie de consenso de que o Salmo 1 e o Salmo 2 foram colocados como uma introdução ao saltério. Alguns afirmam ser um mesmo salmo, inclusive. A ligação entre eles realmente é clara: a) O verbo murmurar (הגה – hagah) que aparece em Salmos 1:2 para descrever a ação do homem feliz e em Salmos 2:1 à trama das nações; b) o verbo perder/perecer (אבד – ‘avad) que define o destino dos ímpios no Salmo 1:6 e também daqueles que não ‘beijam’ o Filho em Salmos 2:12; c) o uso da expressão “feliz”, ou “bem-aventurado” (אשׁרי – ‘ashrey) que inicia o Salmo 1 (1:1) e termina o Salmo 2 (2:12). Este último aspecto de ligação acaba por construir uma inclusão, ou moldura, pois o Salmo 1 começa como termina o Salmo 2, falando do homem feliz e/ou bem-aventurado.

Além destas conexões, a estrutura do Salmo 2 está dividida em quatro partes de três versos: A – versos 1-3; B – versos 4-6; C – versos 7-9; D – versos 10-12.

A primeira parte (versos 1-3) começa com uma pergunta clássica do livro de Salmos e que carrega uma nuance interessante, pois, geralmente, ao fazer este tipo de pergunta (“por quê?”, “até quando?”,  etc.) o salmista/poeta está, na verdade, clamando por justiça. Ele apresenta, em sua pergunta, a conspiração das nações e dos povos contra DEUS e Seu Ungido. As nações e povos querem romper seus laços com o Senhor, no que parece ser um movimento contrário ao descrito pelo profeta Oséias na relação entre Israel e DEUS, pois no capítulo 11:4 de seu livro, DEUS atrai Israel com laços de amor, mas no Salmo 2:3 as nações querem se livrar de laços que parecem aprisioná-los.

A segunda parte (versos 4-6) é uma descrição da resposta divina que é em parte um estado e, em parte, uma ação. O estado da resposta se refere à morada de DEUS: ELE está nos céus, ou seja, Seu trono está além dos tronos dos reis e nações terrestres. A ação de resposta divina é sua fala, que mistura ira e fúria e irá terrificar as nações. Esta fala, apresentada no verso 6, é a declaração de que ELE constituiu o Seu Rei sobre Sião. Quer dizer, como resposta à tentativa das nações de romperem seu relacionamento com DEUS, ELE coloca um Rei sobre Sua santa montanha.

Em seguida, na terceira parte (versos 7-9), temos o processo de coroação deste Rei constituído por DEUS. A frase “tu és meu filho, eu hoje te gerei” era uma frase do contexto real egípcio e, em menor escala, mesopotâmico [1]. Esta frase partia da concepção de que o rei era filho dos deuses e que era gerado não por ocasião de seu nascimento, mas de sua coroação. No Egito esta relação de parentesco era literal e na Mesopotâmia era figurada, fazendo parte de um processo de acordo, de aliança. Assim, o uso da palavra “hoje” visa enfatizar o aspecto de momento histórico e não de nascimento parental.

O que se percebe, inclusive, é uma conexão com 2 Samuel 7:12-16, quando DEUS promete a David que colocaria seu filho como rei depois dele com as seguintes palavras: “Eu lhe serei por pai e ele me será por filho”(verso 14). Ou seja, no processo de aliança entre DEUS e David, há a promessa de que DEUS colocaria um filho de David como rei e que DEUS lhe seria por pai e este descendente de David Lhe seria por filho.

O Ungido por DEUS, no Salmo 2, reinaria, entretanto, não somente sobre Israel, mas sobre toda a Terra, trazendo juízo sobre todos os povos e nações.

A última seção do Salmo 2 (versos 10-12) acontece após esta longa fala divina sobre o Rei que ELE estabeleceria. Agora é o salmista que adverte os líderes sobre o juízo que o Filho trará. Este juízo é fundamentado, segundo o salmista, na relação deles, líderes, com o Filho. Por isso o convite é para que beijem o Filho, ou seja, reconheçam Seu reinado e Seu juízo. O serviço a DEUS com temor e tremor (Salmo 2:11) está relacionado à ação de reconhecerem/beijarem o Filho.

E o Salmo 2 conclui: “feliz todo o que se refugia nEle” (Salmo 2:12). A segurança do juízo não está nas boas ações do julgado, mas em buscar refúgio naquele que julga. O processo da aliança que estabelece a maneira como o juízo procederá coloca para o Filho entronizado o poder do julgamento.

É exatamente assim Daniel o vislumbra em sua visão no capítulo 7: “Continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e o Ancião de Dias se assentou; sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça, como a pura lã; o seu trono eram chamas de fogo, e suas rodas eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríades de miríades estavam diante dele; assentou-se o tribunal, e se abriram os livros. Então, estive olhando, por causa da voz das insolentes palavras que o chifre proferia; estive olhando e vi que o animal foi morto, e o seu corpo desfeito e entregue para ser queimado. Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia, foi-lhes dada prolongação de vida por um prazo e um tempo. Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.” (Daniel 7:9-14)

[1] Ver, por exemplo, GERSTENBERGER, Erhard S. Psalms: part 1. pg. 46-47. (The Forms of the Old Testament Literature, vol. XIV); MAYS, James L. Psalms. pg. 46. (Interpretation: a Bible Commentary for Teaching and Preaching); WEISER, Artur. The Psalms. pg. 113-114. (The Old Testament Library); DAHOOD, Mitchell Dahood. Psalms I: 1-50: Introduction, Translation, and Notes. pg. 11-12 (Anchor Bible Commentary, vol. 16); etc.