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Quando se fala de Abraão, geralmente começamos a lidar com sua história a partir de Gênesis 12. A narrativa, entretanto, começa antes, já em Gênesis 11:26-27. Primeiro (verso 26) o então Abrão é inserido na genealogia de Sem (11:10-26) para, logo em seguida, reaparecer na genealogia de Tera (11:27-32).

Neste segundo momento, lidando com as gerações de Tera, o texto bíblico apresenta Abrão em relação a seu pai, sua família e sua esposa. Sua esposa é descrita de maneira extremamente peculiar: muito embora a filiação de Milca seja descrita, a de Sarai não é apresentada. Nesta introdução, Sarai não possui ascendência, ou seja, não se sabe de onde veio. Outro aspecto peculiar também é apresentado (11:30): ela é estéril (עקרה‘aqarah) e nela não há feto (אין להּ ולד’ein lah valad); ‘aqarah parece carregar um sentido externo, já que remete a desenraizar ou jarretear um animal; ’ein lah valad parece carregar um sentido interno. O narrador faz questão de duplamente enfatizar a total impossibilidade de Sarai gerar filhos/descendentes/herdeiros.

Após esta breve introdução, Gênesis 12 apresenta Abrão em sua relação com DEUS que, inclusive, é a relação que vai nortear toda a narrativa. DEUS e Abrão são os dois principais personagens e todo o resto terá um plano secundário até Gênesis 22. O início desta relação, entretanto, nos introduz um dilema, uma impossibilidade: ao chamá-lo para ser Seu servo e prometer dar-lhe terra, Ele acrescenta a promessa de uma grande nação procedendo de Abrão. O leitor arguto compreende que a história da relação entre este homem e DEUS é pautada pelo absurdo da promessa de que alguém casado com uma mulher estéril se tornaria pai de uma multidão incontável de descendentes, tal qual à areia do mar e às estrelas do céu (Gênesis 13:16; Gênesis 15:5). Um aspecto central do chamado e da promessa é, portanto, impossível de ser cumprido desde o seu princípio.

Abrão argumenta sobre o cumprimento dela em Gênesis 15. Já Sarai racionaliza o cumprimento da promessa, se exclui da aliança e entrega sua serva para que gerasse a descendência de Abrão em Gênesis 16.

Gênesis 17 e 18 são essenciais:

Primeiro DEUS muda o nome de Abrão para Abraão (‘avram – ‘avraham, ou אברםאברהם), basicamente de um nome genérico para um específico (Gênesis 17:5). Depois Ele muda também o nome de Sarai para Sarah (saray – sarah, ou  שֹרי שֹרה), basicamente de um nome específico para um genérico (Gênesis 17:15). Ele refaz e confirma a promessa da terra e da descendência: “far-te-ei fecundo extraordinariamente[…]” (Gênesis 17:6), mas agora também inclui especificamente Sarah neste processo: “Abençoá-la-ei e dela te darei um filho[…]” (Gênesis 17:16). Desta vez Abraão não permanece passível à declaração da promessa e ri (yitschaq – יצחק). DEUS então determina que o nome do filho da aliança seria justamente Isaque (yitschaq – יצחק), conforme vemos em Gênesis 17:17 e 19.

Em Gênesis 18, DEUS aparece novamente e conversa com Abraão, refazendo a promessa e apontando novamente o tempo em que tudo sucederia (Gênesis 17:21 e 18:10). O narrador, entretanto, enfatiza a impossibilidade da realização da mesma, primeiro com uma constatação referente à idade de ambos (Gênesis 18:11) e depois com uma fala interior, um pensamento de Sarah, também referente à idade (Gênesis 18:12). Aqui, Sarah repete a ação de Abraão, e também ri (18:12). A repreensão à risada de Sarah carrega a resolução da promessa impossível: “acaso, para o SENHOR, há coisa demasiadamente difícil?” (Gênesis 18:14).

A narrativa de Abraão é construída sobre um anúncio de enredo claro e paradoxal: Sarah é estéril e não pode gerar filhos, mas DEUS promete que eles seriam os pais de numerosos descendentes e, em específico, do filho da promessa, Isaque. Há uma tensão constante não somente pelo quando Ele cumprirá (que é o que enfatizamos normalmente), mas pelo como! Como a esterilidade de Sarah vai ser revertida? Como um casal tão idoso poderia trazer algo novo à vida?

A resposta é simples: “Visitou o SENHOR a Sarah, como lhe dissera, e o SENHOR cumpriu o que lhe havia prometido” (Gênesis 21:1). O verbo visitar (paqadפּקד) gera a mudança. A visita de DEUS torna a estéril em mãe de filhos. A visita DEUS faz com que a que não podia gerar vida se torne matriarca (Isaías 51:2). A visita de DEUS torna possível o que é impossível. A visita de DEUS torna o riso da incredulidade em riso de testemunho e alegria (Gênesis 21:6).

Somente o paqad do Todo-Poderoso DEUS de Abraão, Isaque e Jacó resolve a tensão entre o que fora prometido e seu cumprimento.