#63

O fim de ano parece sempre ser igual. Cansaço, família, festa, comida, presentes e um recorrente roteiro de clichês (“feliz natal”; “que Jesus nasça na sua vida”; “que seu coração seja uma manjedoura”; etc). Estas expressões, por não terem uma significativa referência textual (e consequentemente, possuírem uma correspondência confusa com a realidade), se tornaram tão vazias quanto as caixas de presentes abertos no dia 26 de Dezembro.

Surge, então, a pergunta: tendo em vista que a historicidade da celebração do nascimento de Jesus no dia 25 de Dezembro é complexa, será que ainda há alguma coisa especial ou significativa nesta data –ou na história do nascimento de Jesus como um todo– para nós que chegamos ao fim do ano apenas com um acúmulo ainda maior de tristezas, alegrias, culpas, objetivos cumpridos ou frustrados, esperanças e desilusões? Algo além de “o verdadeiro sentido do natal é Jesus”? Talvez não; mas há duas semanas foi postado aqui um texto que fez menção do verbo פּקד (visitar) e nesta semana de natal creio ser apropriado revisitar esta pequena palavra e sua importância para a narrativa bíblica no contexto de nosso predicamento contemporâneo.

O fim do livro de Gênesis é marcado pelo verbo פּקד. Duas vezes a palavra é usada antes da morte de José para enfatizar a promessa de que, por mais que o povo passaria muitos anos no Egito (Gênesis 15:13), DEUS certamente os “visitaria” (Gênesis 50:24-25). E, assim, o livro de Gênesis termina.

A promessa da Divina visitação é a expectativa que liga Gênesis ao livro que segue, Êxodo. A grande questão na transição entre os dois livros é: quando e como Deus visitará o povo? Até quando? Após o primeiro capítulo de Êxodo narrar a opressão egípcia sobre os Hebreus, o texto foca no nascimento de Moisés. E há inúmeros paralelos entre a narrativa do nascimento de Moisés e o de Jesus:

1- Ambos nascem em um período de opressão (Egito/Roma)

2- Ambos nascem num contexto de risco de vida (Faraó/Herodes)

3- Ambos nascem num período de aparente silêncio/ausência de DEUS

4- Ambos “se escondem” no Egito durante a infância

Após o capítulo 2, que narra o nascimento de Moisés e a contínua opressão Egípcia, no capítulo 3 de Êxodo DEUS diz a Moisés: “Vai, ajunta os anciãos de Israel e dize-lhes: O Senhor, o DEUS  de vossos pais, o DEUS de Abraão, de Isaque e de Jacó, apareceu-me, dizendo: certamente vos tenho visitado e visto o que vos tem sido feito no Egito” (Êxodo 3:16). A visita Divina é antecipada pelo nascimento. No nascimento de Jesus, o nascimento é a visita Divina.

E nós, hoje em dia, apenas vivemos a realidade do item 3. Vivemos em um novo período de silêncio, de espera, de aparente ausência Divina, de incerteza, de ansiedade, de expectativa pela nova e derradeira visitação. E não temos culpa que nesta data de fim de ano tanto coisa que não faz sentido –especialmente para aqueles que não crêem em nada disto– seja dito e repetido a respeito do nascimento de Jesus.

Mas talvez, em meio aos estranhos sentimentos que nos inundam a cada final de ano, a lembrança de que o nascimento antecipa a visita seja suficiente para nos guiar para dentro da incerteza do novo ano. Que em cada hino natalino, em cada presente aberto, em cada prato feito, em cada clichê repetido, em cada sentimento estranho, você, leitor, possa ser lembrado de que a visita é antecipada pelo nascimento e que nascimento é sinal da proximidade da visita. Pois a grande questão hoje é a mesma da transição entre Gênesis e Êxodo: até quando?