Números 6:22-27 parece estabelecer uma relação interessante com Levítico 9:23-24. Isso porque em Levítico 9 é dito que Moisés e Arão saíram do Santuário e abençoaram o povo e em Números 6:22-27 está a benção que eles deveriam dar. Aliás, esta função de dar benção ao povo era uma função sacerdotal – mediadores da benção divina (Deuteronômio 10:8; 21:5).
A benção é essa:
יְבָֽרֶכְךָ֥ יְהוָֹ֖ה וְיִשְׁמְרֶֽךָ:
יָאֵ֨ר יְהוָֹ֧ה ׀ פָּנָ֛יו אֵלֶ֖יךָ וִֽיחֻנֶּֽךָּ:
יִשָּׂ֨א יְהוָֹ֤ה ׀ פָּנָיו֙ אֵלֶ֔יךָ וְיָשֵׂ֥ם לְךָ֖ שָׁלֽוֹם:
Abençoe-te o Senhor e te guarde.
Brilhe o Senhor Seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti.
Levante o Senhor o Seu rosto sobre ti e faça para ti paz. (Nm. 6:24-26)
A métrica em hebraico desta benção (poema?) é bem curiosa. São 3 linhas, com 3 palavras/12 sílabas na primeira linha, 5 palavras/14 sílabas na segunda linha e 7 palavras/ 16 sílabas na última linha. O nome de DEUS (tetragrama sagrado יהוה – YHWH) aparece três vezes. Quer dizer que, além do nome de DEUS, há 12 palavras. São 6 verbos em que o sujeito da ação é DEUS.
Nas três linhas DEUS é o sujeito explícito/direto do primeiro verbo e oculto/implícito do segundo. Isso ocorre porque parece haver uma relação de dependência entre os verbos, como se o segundo fosse uma decorrência do primeiro, ou como se a primeira ação resultasse na segunda.
Apesar da benção ser dada a todo o povo, os verbos apresentam sufixo pronominal de segunda pessoa do singular. Quer dizer, é coletiva e individual ao mesmo tempo.
A primeira linha é mais geral. Há uma conexão com a idéia de aliança (benção x maldição). A benção está ligada à obediência e esta obediência geraria proteção contra inimigos, fertilidade da terra, etc.
A segunda benção é mais específica. A expressão “brilhar o rosto” tem paralelo com diversos Salmos (4:7; 31:17; 67:2; 80:4,8,20) e com o livro de Daniel 9:17. Nestes contextos, principalmente no Salmo 80 e em Daniel 9, a ideia é de restauração. O brilho de DEUS é um pedido por restauração, por perdão. E o complemento dele, na chamada Benção Sacerdotal é exatamente isto: misericórdia, graça (raiz חנן – chnn).
A terceira benção é mais técnica. A expressão “levantar o rosto” só aparece assim, desta maneira, neste texto. Geralmente é utilizada de maneira oposta, na negativa – “esconder o rosto” (Deuteronômio 31:18; Salmo 44:24; várias vezes em Isaías). Em literaturas paralelas à Bíblia Hebraica, esta expressão carrega um sentido jurídico. O juiz, ao proferir uma sentença, inclinaria seu rosto para o absolvido, ou esconderia o rosto do culpado. O que faz completo sentido com o complemento: a sentença faria a paz do acusado.
O que chama à atenção é que a construção da benção parece prever uma sequência de ação divina em relação ao povo: em obediência, proteção; em pecado, a restauração através da misericórdia; em juízo, a inclinação do rosto favoravelmente para paz do julgado.
Tradicionalmente, se termina a benção aqui. Entretanto, o próximo verso também traz benção e, na construção linguística do texto, parece formar uma unidade:
וְשָׂמ֥וּ אֶת־שְׁמִ֖י עַל־בְּנֵ֣י יִשְׂרָאֵ֑ל וַֽאֲנִ֖י אֲבָֽרֲכֵֽם:
E coloquem Meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei.
Há claramente um rompimento com a estrutura das bênçãos anteriores. Mas há também fatores de unidade: 1) Uma inclusão com o verbo ‘abençoar’, isto é, o primeiro verbo no verso 24 é da raiz בּרך – brch, e o último no verso 27 é da mesma raiz; 2) Os troncos dos verbos estão em quiasmo – Piel + Qal na primeira benção, Hifil + Qal na segunda, Qal + Hifil na terceira e, voltando ao início de maneira invertida, Qal + Piel no verso 27.
Desta maneira, a maior e derradeira benção não é apenas ser absolvido do juízo, mas receber o nome de DEUS. Ou seja, Israel carrega o nome de DEUS. E carregar o Nome de DEUS significa ser chamado pelo nome dELE.