Em Deuteronômio 17:18, dentro de uma seção que trata sobre os deveres de um rei, lemos: “Também, quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si uma cópia desta lei num livro […]”.
A expressão מִשְׁנֵ֨ה הַתּוֹרָ֤ה הַזֹּאת֙, traduzida aqui como “cópia desta lei”, também pode ser traduzida como “esta repetição da Torá”. Esta segunda possibilidade de tradução possui forte relação com a própria essência do livro de Deuteronômio, já que nele, leis e histórias previamente apresentadas em outros livros do Pentateuco são repetidas.
É curioso ver como a ideia de repetição está conectada à essência das leis de DEUS. Todas as leis estipuladas por DEUS na criação têm o intuito de proporcionar vida ao ser humano. Assim, o ser humano é essencialmente, obediência. Como diz Heschel[1], se existimos, existimos porque antes de existir, já obedecemos. Antes de existir, obedecemos ao comando de DEUS: “Exista!”. Assim, biblicamente, a máxima deveria ser: obedeço, logo existo. Nossa existência não está relacionada a uma vontade de existir, afinal, para isso seria necessária a existência de uma vontade. Existimos porque somos convocados a existir. Existimos porque obedecemos a uma palavra. À palavra de DEUS.
E nesta existência, intrinsicamente ligada à obediência, cabe a nós atentamente ouvirmos a voz do SENHOR e guardarmos todos os seus mandamentos (Deuteronômio 28:1). Essencialmente, repetir o que Ele nos propõe.
No entanto, para muitos, repetição é sinônimo de morte. Para estes, o que repete deve ser visto como uma peça em uma engrenagem. Afinal, segundo afirmam, se o universo fosse pessoal, ele variaria.
Contudo, não há como afirmar que repetição é sinônimo de morte. A variação nas atividades humanas é causada não pela vida, mas pela morte; pelo esmorecimento de sua força. O que quebra a repetição das batidas do meu coração? O que quebra a repetição da minha respiração? O que quebra a regularidade do sol que se levanta todos os dias? É a vida? Não. É a morte.
Repetir é sinônimo de vida.
Esta verdade pode ser notada claramente nas crianças. Quando fazemos alguma brincadeira divertida com uma criança normalmente ouvimos: “De novo!”, sendo que este “de novo!”, muitas vezes, pode vir a durar horas. Este pedido é feito pela ausência de vida nelas? Não, muito pelo contrário. O adulto faz “de novo” até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia.
E talvez, esta seja a realidade divina. Segundo G. K. Chesterton[2]: “É possível que DEUS todas as manhãs diga ao sol: “Vamos de novo”; e todas as noites à lua: “Vamos de novo”. Talvez não seja uma necessidade automática que torna todas as margaridas iguais; pode ser que DEUS crie todas as margaridas separadamente, mas nunca se canse de criá-las. Pode ser que Ele tenha um eterno apetite de criança; pois nós pecamos e ficamos velhos, e nosso PAI é mais jovem do que nós.”
Obediência e repetição não podem ser separadas.
Na repetição há vida.
[1] A. J. Heschel, Quem é o homem?
[2] G. K. Chesterton, Ortodoxia