Em Levítico 23:26, lemos: “Mas, ao dez deste mês sétimo, será o Dia da Expiação; tereis santa convocação e afligireis a vossa alma; trareis oferta queimada ao SENHOR.”
A festa de Yom Kippur[1] (“Dia do Juízo” ou “Dia da Expiação”) é uma das mais importantes que aparece nos relatos da história do povo de Israel. De acordo com o capítulo 16 de Levítico, o ritual sacrifical deste dia envolvia essencialmente um sacrifício de novilho, feito em favor do sumo sacerdote e sua casa (v.11), um carneiro para holocausto (v.3), e um bode como oferta pelo pecado do povo (v.15). Além disto, neste dia outro bode era escolhido, sobre o qual o sumo sacerdote Arão deveria “confessar todas as iniquidades dos filhos de Israel, todas as transgressões e todos os seus pecados” (v.21), e na sequência lançá-lo no deserto. Levando assim, consigo, “todas as iniquidades deles para a terra solitária” (v. 22). Nesta ocasião sagrada e solene, o sumo sacerdote, já advertido quanto aos cuidados ao entrar no Tabernáculo (Levítico 16:2-4), tinha acesso ao Santos dos Santos para aspergir o sangue do sacrifício sobre a tampa da arca da aliança, o propiciatório (kapporeth)[2].
A essência desta festa pode ser lida no v. 30 de Levítico 16, onde é dito: “Porque naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis purificados de todos os vossos pecados, perante o SENHOR.”
Ao lermos o capítulo 8 de Daniel, podemos ver uma série de relações com o contexto de Yom Kippur. Além de, logo no início, notarmos um bode e um carneiro (vv. 3-4), a atmosfera é de Levítico 16. Nos vv. 11 e 12 aparecem as palavras: “santuário”, “pecado”, “serviço diário”, e a referência ao “príncipe dos exércitos” que, além de ser um termo técnico para o sumo sacerdote (Esdras 8:24), no livro de Daniel aparece em referência a Miguel (Daniel 10:5, 13, 21; 12:1) que veste roupas de linho, tal qual o sumo sacerdote no Yom Kippur (Levítico 16:4).
Depois de ver, em sua visão, um chifre pequeno que tenta usurpar o poder de DEUS por meio de uma transgressão assoladora, Daniel ouve uma conversa entre dois seres celestiais. Nela, um deles pergunta até quando duraria toda aquela tragédia, e a resposta é: “Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado” (Daniel 8:11-14). Na sequência do livro, Daniel compreende, com auxílio divino, que aquilo se referia “ao tempo do fim” (v.17), um tempo escatológico.
De acordo com Michael Fishbane[3], no texto bíblico, o relato da construção do santuário (Êxodo 25-40; 1 Reis 7:40,51) parece ter uma relação com o relato da criação da terra (Gênesis 1:1-2:4). Por exemplo, segundo ele, há uma série de paralelos verbais entre Gênesis 1:31; 2:1-3 e Êxodo 39:32,43; 40:33. Além de que em ambos os relatos vemos 7 estágios e em ambos aparece a expressão “terminada a obra” (Gênesis 2:2; Êxodo 40:33; 1 Reis 7:40,51).
Assim, a purificação escatológica do santuário tem relação com a purificação da terra. Em ambas, vemos oportunidade de nova criação. E este é o espírito de Yom Kippur. O espírito de que o anúncio do juízo alimenta em nós a esperança por uma nova criação. No anúncio do juízo, há oportunidade para o perdão.
Como é dito em Yom Kippur: “Compadece-te de mim, ó DEUS, segundo a tua benignidade; e segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. […] Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me e ficarei mais alvo que a neve” (Salmos 51:1-2,7)
[1] Yom haKippurim (י֧וֹם הַכִּפֻּרִ֣ים) em Levítico 23:26
[2] Palavra oriunda da mesma raiz de Kippur.
[3] Michael Fishbane, Text and Texture: Close Readings of Selected Biblical Texts (New York: Schocken, 1979).