Gênesis 2 termina com uma declaração do narrador deveras interessante: “E estavam ambos nus, Adão e sua mulher, e não se envergonhavam” (Gênesis 2:25). Duas palavras aqui são importantes pra entender o que acontece antes e o que acontece depois desta afirmativa: nus (עֲרוּמִּים – ‘arumim) e envergonhar (יִתְבּוֹשָׁשׁוּ – yitbošašu). Após serem criados por DEUS, homem e mulher estavam nus e não havia motivo de vergonha.
O verbo “envergonhar” nos ajuda a entender a narrativa imediatamente anterior ao verso. Ele aparece aqui num tronco verbal de ação intensiva e voz reflexiva, ou seja, mais do que não se envergonhar um do outro, eles não se envergonhavam de si mesmos. Este verbo aparece desta maneira uma única vez em toda a Bíblia Hebraica, justamente neste texto. Assim, o narrador constata mais do que uma plenitude social do relacionamento entre homem e mulher, mas uma condição de plenitude existencial do indivíduo também (em sua relação com ele, mesmo).
Já a condição de nudez que o texto apresenta nos ajuda a entender o que vem logo depois. Gênesis 3 começa com uma declaração curiosa sobre a serpente que visa conectar o que já havia sido dito ao que acontece ali. O texto diz que a serpente era ‘arum (עָרוּם), o que cria um jogo de palavras óbvio com a qualificação do primeiro casal, que era ‘arumim (עֲרוּמִּים). O jogo se baseia na regra do plural do substantivo masculino, feito justamente como o acréscimo do sufixo –im (ִים). Entretanto, embora compartilhem do mesmo plural, ‘arum (עָרוּם) e ‘arom (עָרוֹם) (de onde vem o ‘arumim de Gênesis 2), são palavras diferentes. Enquanto ‘arum carrega o sentido de dissimulação, sagacidade, malandragem, ‘arom significa estado de completa nudez ou semi-nudez. O jogo de palavras parece querer opor a condição do primeiro casal ao da serpente. Ambos, serpente e seres humanos, criaturas, mas em condições distintas: a serpente dissimulada, os seres humanos nus, despidos.
O que acontece a partir do diálogo da serpente com a mulher em Gênesis 3 irá fazer com que aquilo que a descrição do narrador ao final de Gênesis 2 diz a respeito do primeiro casal seja completamente invertido. Ao ouvirem a serpente e comerem do fruto, a respeito do qual lhes fora ordenado que não comessem, eles deixam a nudez e se vestem (Gênesis 3:7) e se escondem por medo (Gênesis 3:10); ou seja: assumem a vergonha de si mesmos e em relação a DEUS.
A transgressão acarreta duas mudanças drásticas de natureza e estado.
O mais emblemático, entretanto, é entender que o que eram enquanto homem e mulher, à imagem e semelhança de DEUS (Gn. 1:26-27) é exatamente o que eles deixam de ser: “O homem era como um de nós…” (Gênesis 3:22).
A desobediência fez com que deixassem de ser o que eram… e se tornarem o oposto.