O relato da criação de homem e mulher em Gênesis 1 e 2 guarda uma série de aspectos interessantes. Em Gênesis 1:26-27 a descrição da criação do primeiro casal é feita de maneira a ressaltar a relação deles com DEUS. Em Gênesis 2:5-7 e 2:18-22 a estrutura do texto indica que o objetivo é descrever a relação deles entre si e com a criação.
A criação do homem (no sentido de ser humano) no capítulo 1 de Gênesis segue o padrão literário da seção (1:1-2:3). Primeiramente uma espécie de anúncio do que será criado e, logo em seguida (geralmente com o uso de mesmo verbo e expressões semelhantes) o relato do que foi criado. Assim, em Gênesis 1:26 o anúncio é feito (e é feito) de modo a focar na função que ele (ser humano) teria: ser à imagem e semelhança de DEUS. Dentre as várias possibilidades que esta expressão pode ter, uma que parece carregar um sentido mais próximo ao texto logo em seguida é a de que ao homem foi delegado o poder de representar a DEUS na criação. Isto, porque após dizer que criaria o homem à Sua imagem e semelhança, a função deste homem é descrita como sendo “dominar sobre a criação”. Após a criação do homem (ser humano – אדם), a ordem divina dada a ele, é além de dominar (רדה), subjugar (כּבשׁ) as outras criaturas. Esta idéia de domínio é a única que difere o homem das outras criaturas, já que para ambos (homem e criaturas) também é ordenado que cresçam e se multipliquem e encham a terra. Ou seja, ser à imagem e semelhança é o senhorio sobre a criação. Como DEUS é o Rei, o homem seria o rei. Isto significa que o princípio imago Dei deságua em imitatio Dei.
O “poema” de Gênesis 1:27 é interessante por sua construção:
וַיִּבְרָ֨א אֱלֹהִ֤ים אֶת־הָֽאָדָם֙ בְּצַלְמ֔וֹ
בְּצֶ֥לֶם אֱלֹהִ֖ים בָּרָ֣א אֹת֑וֹ
זָכָ֥ר וּנְקֵבָ֖ה בָּרָ֥א אֹתָֽם:
Em vermelho está o verbo criar (בּרא) repetido três vezes. Em azul claro o DEUS (אלהים), que aparece duas vezes e é o sujeito do verbo em todas as três vezes em que este ocorre. Em verde está a expressão “na imagem” (בּצלם), repetida duas vezes. Por fim, em cinza, estão as referências àquilo que DEUS cria: o ser humano (אדם), que depois é mencionado por sinal do objeto direto (את) mais sufixo pronominal no singular na segunda linha e sinal do objeto direto mais sufixo pronominal no plural na terceira linha. Tudo isto pra dizer que ser humano é imagem e semelhança de DEUS, que ser humano é macho e fêmea e que ambos (juntos/separados) são imagem e semelhança de DEUS.
Em Gênesis 2, a criação do ser humano segue dois estágios: primeiro do homem, depois da mulher. O homem é criado do pó da terra (עפר האדמה) e recebe um sopro de vida (נשׁמת חיים). O nome do homem está conectado diretamente à terra – אדם e אדמה – sendo “terra” um substantivo feminino e “homem” um substantivo masculino da mesma raiz. Os animais, curiosamente, também são criados do pó da terra (Gênesis 2:19) e a ação da criação de ambos, homem e animais, é descrita com o mesmo verbo – formar/moldar (יצר). O homem, que veio da terra, recebe como missão/função cuidar da terra (Gênesis 2:15). Como DEUS plantou e preparou o jardim, o homem deve trabalhar nele (imitatio Dei).
Na parte final de Gênesis 2, a criação da mulher é apresentada de maneira curiosa. DEUS constata que o homem necessitava de uma ajudadora. ELE forma esta ajudadora de uma costela do homem. O verbo usado para esta operação de feitura da mulher é construir (בּנה), bem mais elaborado do que o verbo usado para o homem. A função dada à mulher, de ajudadora, também merece nota. A palavra ajudadora, do hebraico, aparece poucas vezes no texto bíblico (cerca de 21) e em na maioria esmagadora das vezes em que aparece se refere a DEUS; ou seja: ELE é o ajudador. Assim como ELE é o ajudador, a mulher o será (imitatio Dei). A mulher, que veio do homem, recebe a função/missão de cuidar do homem. O nome dado a ela, inclusive, reflete esta relação: ela é אשׁה (mulher), porque veio do אישׁ (homem) – substantivo feminino e masculino da mesma raiz aqui também.
A construção da narrativa é impressionante: sua origem é também sua missão. O homem da terra, trabalhará a terra. A mulher, do homem, ajudará o homem. Não é a toa que, em Gênesis 3, após o pecado, ao receberem a punição divina, ambos, mulher e homem, sofrerão nas “mãos” de sua missão/origem: a mulher é punida em relação ao homem; o homem é punido em relação à terra.
A origem é também o destino, desde o princípio.