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Dentre todos os marcos simbólicos da cristandade a morte de Cristo ocupa a centralidade da prática devocional, teológica e litúrgica de todos os grupos cristãos. A Cruz é seu sinal religioso por excelência. Os últimos dias de Jesus, relembrados e encenados nas festividades anuais da Semana Santa (que já foi inclusive chamada de “Semana Autêntica” ou “Semana Maior” devido à importância que os cristãos davam a esta época em que se celebrava de maneira quase teatral os últimos momentos da vida do Messias sobre a Terra) ainda hoje são motivos de controvérsia histórica e teológica, explorados constantemente em livros, filmes, documentários e debates. No passado, quando a ênfase era a pecaminosidade presente em quase todos os atos da vida humana e a Igreja era compreendida como elo entre Deus e o homem, celebrar liturgicamente a morte de Cristo era experimentar uma oportunidade considerada como extremamente sagrada por todos os fiéis, de forma que cada país, cultura e região em que o catolicismo foi a força de fé preponderante, expressa sua forma de viver e experimentar o sofrimento que foi chamado de “Paixão” do Cristo.

Hoje os dias são outros. A palavra e até mesmo o conceito de “pecado” não fala mais da mesma maneira ao homem moderno. Pecado é algo relativo e sua ideia soa para muitos cada vez mais como um tipo de tentativa de controle moral de uma casta religiosa sobre aqueles que preferem viver conduzidos pela própria consciência.

Como entender e experimentar a paixão do Cristo em nossos dias? Relembrando de maneira cênica uma história já tão distante de nós?

Talvez hoje, mais do que nunca, estamos maduros para reconhecer na paixão do Cristo, o que Leonardo Boff classificaria como “Paixão do Mundo”. Nossa sociedade está cada vez mais violenta e injusta. Vivemos em um mundo onde milhares de crianças e famílias são expostas ao exílio, fuga e morte pela guerra e questões políticas como na Síria, por exemplo. Vivemos em um mundo onde diferenças clubísticas entre torcedores de futebol se tornaram motivos mais do que suficientes para justificar a agressão e até mesmo o assassinato daquele que é visto como inimigo por vestir uma camisa diferente. Um mundo onde Darfurs, Sírias e Ucrânias são a ordem do dia. E a intolerância está paradoxalmente cada vez mais associada à religião e evidenciada em discursos medievais e radicais da parte de muitos pseudo-líderes religiosos que estimulam seus fiéis a desenvolverem atitudes preconceituosas e exclusivistas a todos os que lhe são diferentes na crença e no estilo de vida.

Quero apresentar um exemplo histórico do que estou afirmando: na Jerusalém de hoje um dos pontos turísticos mais disputados pela cristandade é a igreja do Santo Sepulcro. Local visitadíssimo cada ano durante as festividades da Semana Santa, esta igreja é vista por muitos fiéis e mesmo por estudiosos e arqueólogos como o verdadeiro local do calvário e do túmulo de Jesus. Uma rápida visita a esta igreja nos oferece um espetáculo no mínimo irônico: cada parte do santuário está sob controle de diferentes tradições cristãs, cada pedacinho de chão é disputado por católicos, ortodoxos gregos, etíopes, armênios e não raras vezes verdadeiras guerras acontecem no interior das paredes sagradas quando grupos adversários se veem partilhando lugares comuns durante a execução de suas liturgias. Eu mesmo já presenciei momentos constrangedores e fui alvo de protestos e até mesmo de maus tratos dentro desta igreja em algumas de minhas viagens a Israel conduzindo grupos de turistas. A situação é tão delicada que as chaves das portas principais da igreja ficam sob os cuidados de uma família de muçulmanos a fim de evitar uma verdadeira guerra entre os diferentes grupos cristãos. Isto nos mostra que o culto à crucificação sem o conceito da mensagem da Cruz de Cristo gera mais morte e exclusivismo do que redenção.

Na paixão do Cristo vemos a solidariedade de DEUS com nossa dor. Vemos em Jesus a experiência daquEle que foi vítima da intolerância religiosa, da tortura psicológica, da violência física, do abuso, do abandono e que se iguala a todos aqueles que, de uma forma ou outra, vivenciam na sua vida o grito silencioso da dor e da amargura. DEUS se irmanou em Cristo com nossa tragédia. Não somos salvos pelo sofrimento ou pela dor da tortura que Jesus sofreu. A crucificação de Cristo não salva ninguém. A Crucificação é apenas o espetáculo histórico que evidencia a maldade e a crueldade humana. É o show da intolerância e da barbárie. O que nos salva é a entrega de Cristo por nós. E de acordo com as Escrituras Ele é o “Cordeiro” morto antes da criação do mundo (Apocalipse 13:8 e 1 Pedro 1:18 e 19). Antes da criação de todas as coisas, mesmo do universo, na sua infinita presciência, DEUS já havia se entregado em Jesus pela salvação de toda Sua criação. A vida de Cristo é nossa vida. E ao contrário do que historicamente a religião tem apresentado, crer no sacrifício de Cristo deveria como consequência imediata gerar em nós um sentimento de solidariedade com a causa de todos os que sofrem seus “calvários” no dia a dia, e como consequência disto, emular em nós ações práticas contra toda forma de violência e injustiça.

Nada é mais cristão do que reconhecer o Jesus que diariamente ainda é maltratado através dos milhares que sofrem silenciosamente perto de nós. Se você é religioso, continue celebrando sua crença nas implicações da morte de Cristo como tem feito a cada semana em seus momentos de adoração individual ou coletiva; mas lembre-se que Jesus prefere ser reverenciado e abraçado no próximo, no sacramento diário que é a vida do necessitado. Por que “sempre que fizeste a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mateus 25:40). Em Cristo todas as semanas são santas por que sua paixão acontece a cada dia na dor dos pequeninos, dos esquecidos, dos rejeitados e dos oprimidos. E em cada dia se renova a oportunidade de celebrarmos a Cristo, sendo cada um de nós a experiência de alívio, conforto e ressurreição na vida de cada necessitado.

Esta é a verdadeira liturgia da existência, seja você religioso ou não.

Marcelo Rezende