“A essência de toda arte bela, de toda grande arte, é a gratidão.” Nietzsche
O que torna arte boa, ou bela? Por muito tempo a Bíblia não foi –e em certos círculos ainda não é– considerada uma plataforma viável para este tipo de discussão. Somente por isto, já, o primeiro problema que enfrentamos ao tentarmos ir à Bíblia para despertar uma reflexão como esta, é: como seria possível incluir a Bíblia com suas inúmeras narrativas —por alguns consideradas primitivas— em uma discussão como esta? Yoram Hazony comenta a respeito deste antigo (e ainda atual) dilema: “os autores bíblicos utilizam técnicas narrativas que propõem esquematizações conceituais tão abstratos quanto àqueles que aparecem em tratados Aristotelianos.” Isto se dá, de acordo com Hazony, pelo fato da Bíblia ser capaz de expressar a complexidade da vida real através de narrativas que comunicam conceitos e valores abstratos mediante uso do desenvolvimento de suas personagens e histórias. Construções filosóficas não conseguem expressar a complexidade da existência humana em suas reduções. E é por isso que tanto filósofos como Platão quanto escritores bíblicos discutiam o bom, o verdadeiro e o belo através de narrativas literárias. Portanto, mesmo que a principio apenas por curiosidade, há abertura para que se discuta questões gerais, incluindo a essência da arte, a partir da Bíblia.
Voltando à pergunta original: o que torna arte boa, ou bela? Não quero aqui propor uma solução, já que cada período da história carrega suas próprias respostas. Através dos séculos incontáveis artistas aceitaram o desafio de tentar entender e expressar o que é; a Realidade com “R” maiúsculo. Os autores bíblicos compreendem este desafio. Quando Moisés (Êxodo 3:15) pergunta o nome do DEUS que o envia de volta ao Egito, ELE simplesmente diz: EU SOU. Moisés se confronta com aquELE que É.
Mas ao continuarmos lendo a história, após o Êxodo do Egito, Moisés retorna à mesma montanha. Na transição do capítulo 31 para o capítulo 32 do livro de Êxodo, encontramos algumas ironias que se aplicam a esta discussão. Por 6 capítulos DEUS esteve conversando com Moisés a respeito dos detalhes da construção do Santuário onde ELE faria Sua morada entre os Israelitas (Êxodo 25:8). O fim deste discurso registrado no capítulo 31 de Êxodo começa com o chamado de Bezalel, um artista que recebe não somente um chamado, mas o próprio Espírito de DEUS para fazer “arte” (vale ressaltar aqui —algo que diversos teólogos já notaram no passado— que o primeiro ser humano a “receber” o Espírito nas Escrituras é um artista). Interessante notar que, assim como na criação do mundo registrada em Gênesis 1-2, nenhuma ação criativa de DEUS ocorre sem a presença do ruach, do Espírito. Bezalel, e outros, são então comissionados a produzir arte; são chamados a reproduzir artisticamente e com alto padrão estético tudo que foi descrito nos capítulos anteriores; são convocados a criar algo que fosse mais do que apenas estética: o santuário que faria com que DEUS pudesse habitar em meio ao povo.
No capítulo seguinte o narrador tira o foco do alto da montanha (onde o diálogo entre DEUS e Moisés acerca do santuário, Bezalel, e arte acontece) para o vale onde Arão e o povo aguardam. O texto começa com a impaciência do povo. O povo diz não saber onde Moisés está e se voltam para Arão com o pedido: fazer um deus que possa ir adiante deles no restante da jornada. Ironicamente o impaciente Arão, e não Bezalel, passa a criar “artisticamente” um bezerro de ouro que o impaciente povo passa a adorar como um impaciente deus (que de cara exige uma festa).
Nesta curta transição entre os capítulos 31 e 32 de Êxodo somos confrontados com dois tipos de arte e de sua utilidade:
A primeira é arte como um meio: criação a serviço do Criador. Além de artisticamente bela, tinha como finalidade principal fazer a morada de DEUS (o tabernáculo de DEUS com os homens).
A segunda é arte subvertendo o Criador e deformando Sua criação. O bezerro era, de acordo com a descrição, um deus a ser adorado. A criatura traz “deus” à existência.
Na primeira a arte é caracterizada por sua dependência (do Eterno) e funcionalidade (a serviço da criatura e do Criador). Aqui, arte é o processo pra se chegar além da arte, a dizer: DEUS.
Na segunda, a arte é caracterizada por sua independência (do Eterno) e finalidade (em desserviço da criatura e do Criador). Aqui, arte é o produto final; não há nada além dela.
Thomas Schirrmacher descreve bem o caráter avassalador da segunda forma artística ao escrever: “Arte precisa lidar com quatro perigos. Primeiramente, o artista pode ver a si mesmo como DEUS, uma transgressão do primeiro mandamento. Segundo, a obra de arte em si mesma pode ser adorada, ou até mesmo feita com esta intenção, que transgride o Segundo Mandamento. Terceiro, arte pode ser uma rebelião direta contra DEUS, uma violação do Terceiro Mandamento. Quarto, arte pode denigrir ou machucar a humanidade, a criação de DEUS, se voltando assim contra a criação como um todo, destruindo-a ao invés de beneficiá-la, o que transgride os demais mandamentos.”
Além destas diferenças, outros contrastes parecem saltar do texto: Bezalel recebe o Espírito de DEUS para criar e todos aqueles que “em seu coração” também eram hábeis são agraciados com sabedoria para criar. A arte que eles irão produzir só pode ser feita num contexto de gratidão. Eles possuem habilidade natural, mas o Espírito e a sabedoria para executar vêm de DEUS! O que eles recebem de DEUS (habilidade) eles devolvem a Ele em forma de arte. Sua arte aparece e se forma num contexto de gratidão.
Arão, por outro lado, ignora qualquer dádiva divina. Ignora até que a prata e o ouro utilizados na criação do bezerro não somente pertencem ao Senhor (Ageu 2:8) mas que também foram dádivas divinas ao deixarem o Egito (Êxodo 3:22, 11:2, 12:35). Sua arte não ultrapassa o objeto criado e está totalmente alienado do contexto de gratidão.
Nietzsche escreve que a essência de toda arte bela é a gratidão. É a gratidão que faz com que arte vá além dela mesmo. A gratidão impede uma subversão do que É e a tentação de gerar uma nova realidade superficial e falsa. A gratidão a DEUS pelo que é material e pelo talento carrega o potencial de criar arte que leva artista e observador ao encontro com o que de fato É. Com uma arte que está em continuidade e harmonia com a ação criadora do Criador.