#39

Tenho dificuldade em escrever a respeito de Guimarães Rosa. Por inúmeras razões. Principalmente porque –além de considerá-lo o melhor que já li em língua portuguesa– seus textos, ao longo dos anos, se tornaram muito pessoais para mim.

O dialeto em que escolheu escrever a totalidade de sua obra (ou ao menos daquela publicada em vida) o torna hermético, sim, mas o que de início se apresenta como um acesso penoso, com o tempo apenas se prova como parte da jornada: o caminho para se chegar aos múltiplos significados de seus textos –a linguagem– é, em si, um significar.

Italo Calvino diz em “Por que ler os clássicos” que “clássicos” são livros que “atraem uma nuvem de interpretações sobre si, mas ao mesmo tempo a repele para longe”. E as opiniões e leituras deste conto são as mais variadas e até díspares. Talvez porque, parafraseando o ditado popular, quando falamos de um texto como este, revelamos mais a nosso respeito do que a respeito do texto em questão.

É o filho quem narra a história. Sabemos o que sabemos de todos os acontecimentos e personagens a partir da visão dele, que ainda era menino quando o pai entrou na canoa “para dela nunca mais saltar”.

O que me chama à atenção é o que sua narrativa mais parece tentar esconder; aquilo que, no fundo, o narrador sabe ser verdade e justamente por isto não mede esforços para diminuir/esconder ou relativizar (o que apenas o evidencia ainda mais): o pai enlouqueceu.

O texto todo trata da problemática de como lidar com a loucura do pai. A loucura do progenitor. A loucura de alguém baseado em quem você define quem você é. A loucura de alguém ou algo que simplesmente não pode ter enlouquecido, porque as conseqüências disto seriam em demasiado pesadas para que se as pudessem carregar.

Logo, os defeitos se tornam virtudes. É pagamento de promessa. É altruísmo por estar com doença contagiosa. É profeta qual Noé. Porém nenhuma explicação subsiste à realidade. E permanece apenas um sentimento de culpa inexplicável, injustificável e imobilizador: “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?” “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar.” Todo e qualquer prazer (uma comida boa, etc.), todo e qualquer alívio (um cobertor no frio) apenas alimentam o sentimento de culpa.

O que mais expressa e simboliza a loucura do pai é o fato dele não ter ido a nenhuma parte. Esta imobilidade anti-natural talvez seja o maior sintoma. Se ao menos se deixasse levar pela correnteza, ou lutasse contra ela para chegar a algum destino… Mas não. Todo o esforço sobre-humano é apenas para permanecer onde se está, para manter o status quo, irracionalmente, em meio a algo fluido e móvel –águas que por ele passam, águas passadas– impedindo estas águas de levarem-no consigo.

Como conseqüência disto, o menino corajoso e de iniciativa –“Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez, de jeito.” E: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?”– se tornou um adulto (idoso?) covarde, inerte…e fraco. Nem para levar adiante a loucura do pai, sequer para uma segunda geração de remadores insanos ele serve. Perdeu o pai. Perdeu o restante da família. Perdeu-se a si próprio e a vida que poderia ter vivido.

Seu pedido final de ser posto no mesmo rio em canoa semelhante post mortem é sua última covardia. Uma imitação barata do legado maldito de seu pai. Afinal: neste caso, apenas deixaria o rio e a correnteza o levarem “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”.

Leonardo Gonçalves