O conto “A Terceira Margem do Rio” se impôs, pra mim, desde a primeira vez de sua leitura, cerca de duas décadas atrás, como uma necessidade existencial. De todas as perguntas, a que me dirige de volta ao texto é sempre a mesma: a terceira margem do rio. O quê ou qual é a terceira margem? Seria o barco? Ou pai? Talvez o filho? O próprio rio? A memória? A relação entre passado, presente e futuro? A genialidade de Guimarães Rosa nesse conto reside exatamente na multiplicidade de respostas. Dependendo o ângulo em que se olha, da perspectiva com que se lê, cada reencontro com o texto trará uma nova chave interpretativa.
A atitude do pai, abandonando o convívio da família para viver entre as margens do rio, sem nem avançar, nem retroceder, sem nem estar com eles, nem sem eles, é o alicerce em que o conto está construído. A estas tensões, somam-se a tensão entre passado e presente, entre presente e futuro, entre memória e esquecimento: “Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte.”
Basicamente, a atitude do pai é incompreensível para as personagens e para o leitor. Não há nenhum tipo de explicação. Esta falta de explicação é que move, de certa maneira, a busca do filho. Enquanto todos vão desistindo de tentar entender o que aconteceu, o filho continua sua incessante busca por sentido. Ele, o filho, quer entender quem o pai era de fato. Entender o porquê ou os porquês da ação paterna. Entender o que o levou à canoa e o que não o tira de lá. Mas o entendimento que o filho busca é cognitivo e, talvez, por isso, o filho, claramente, falha em entender o pai.
O pai, por sua vez, se exila. Vê de longe. Não se mostra simpático aos apelos da família. Não se mostra simpático à necessidade que filhos e esposa têm de sua presença: “Nem queria saber de nós; não tinha afeto?” O pai está concentrado em sua jornada ilógica. Uma jornada de ir e não ir.
O não diálogo entre pai e família deixa no leitor a sensação de ausência completa de empatia ou simpatia entre eles.
Mas, de repente, o filho toma uma atitude além da cognição, além da lógica… Ele assume uma loucura –“Ninguém é doido. Ou, então, todos.”– se dirige ao pai na canoa e propõe assumir o lugar dele e permitir que o pai descanse. O discurso dele pauta-se por um entendimento experiencial… Ele assume o pensamento do pai e, de alguma maneira, fala ao pai da perspectiva do pai “eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa”. Neste clímax, o pai, até então imóvel e surdo aos constantes convites familiares de aproximação, se volta ao filho e se dirige à borda…
Ao abandonar sua própria razão e permitir-se a loucura, o filho finalmente cria um elo com o pai. O pai, irrazoável aos argumentos familiares até então, parece ver no desejo do filho de assumir o seu lugar na canoa, o conforto de ser, finalmente, entendido.
Quando o filho abandona sua cognição e se torna simpático/empático à loucura do pai, o passo para reunião entre ambos é dado… Mas o filho logo desiste e ambos permanecem como estão. O rio em torno do qual toda a vida deles tinha se desenrolado, torna-se então, ao final do conto, um lugar de sepultamento, de morte.
Mikhail Bakhtin escreveu: “A compreensão simpática reconstrói o homem interior por inteiro, em categorias estéticas compassivas, para uma nova existência, numa nova dimensão do mundo.”
A “compreensão simpática” não se trata da duplicação do que o outro vive, ou sofre. O que o outro vive e sofre será sempre diferente daquilo que eu mesmo vivo e sofro, ainda que conceitualmente possam ser situações idênticas (a morte de um familiar, uma doença, etc.). Mas na relação com o outro, experimento nele coisas que nunca poderia experimentar em mim (nascimento e morte, por exemplo, são usados por Bakhtin como ilustração) e redimensiono aquilo que, conceitualmente, vivi ou vivo também. Por exemplo, a ausência do pai não é experimentada por ele mesmo, mas pelo filho, pela família. E nos termos da ausência do pai, que o filho descreve, no último parágrafo do conto, a sua própria futura ausência: “Mas, então, ao menos, que no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”
Com tudo isto, o que dizer… Entendo-me melhor porque entendo o outro e vice-versa. Mais até, reconheço-me eu por causa do tu. Uma existência individual que só é validada pelo outro… Mas não um outro pelo qual não me importo ou que tomo por inferior. Um outro com quem me identifico e por quem tenho empatia. Da compreensão simpática destas duas margens, que sou eu, que é o outro, pode nascer uma nova existência, uma terceira margem…
Edson Nunes Jr.