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Sobre o conto? há muito o que refletir, talvez nem tanto a dizer. Afirmo isto porque há uma enorme quatidade de percepções que se somam à leitura de cada indivíduo e essas representações se diferem em função da história, do trajeto, da experiência de cada leitor, de modo que apoiado na realidade de quem lê, o “irreal” se torna a realidade de quem leu não somente um conto, mas a dinâmica da própria vida. Desde o mais técnico/teórico texto científico à factual matéria jornalística, cada sentença discernida produz outra sentença, resultante inevitável do olhar alheio. Alguns já diziam: ler um livro é escrever outro livro.

Por conta disto, no meu caso, entendo que compor um texto seja um árduo exercício de paciência e desprendimento, pois há uma chance considerável de pouquíssimas pessoas entenderem em essência o que o autor do texto propõe. Escrever é lançar sorte, é se expor, é se permitir ser usado, é se fazer vulnerável, é abrir mão do controle, em suma, é assumir o terrível risco de jamais ser compreendido. E é justamente aí que reside a beleza de tal prática. Pois uma vez consciente das implicações, decidir fazê-lo também pode ser encarado como um ato gracioso. É um furtar-se de si memso em prol do mais cuidadoso ou vil intérprete. É deixar-se levar na vida de alguém, a favor de alguém.

Para quem lê, sempre algo se ganha. Para quem escreve, dramaticamente algo se perde.

Levando em conta as duas posições —de quem escreve e de quem lê— ao falar a respeito do conto “A terceira Margem do Rio” me vejo obrigado a transitar entre as duas, ou seja, permitir que as águas que compõem o rio da vida representem a fluidez necessária ao momento. Talvez, por força das contingências, diante dos vários atores propostos por Guimarães Rosa, nutro grande estima pelo que não fala: o rio. Gosto dele porque está sempre lá, profundo, largo, misterioso, mas em constante mudança, pois as águas nunca são as mesmas. E mesmo que submisso ao deslizar do Pai, é impossível que se furte a agir sobre Ele, pois o Pai, silente e aparentemente louco, já se tornara parte dele.

Sim, existe o rio. Sim, ele possui margens. Entretanto, as margens visíveis não limitam o rio, mas o integram, são partes indissolúveis dele, ou seja, não existe rio sem margens. Como bem observado pelo professor Afonso Cardoso no texto anterior, “não são as margens que limitam o rio. É o rio que determina as margens”. Todavia, mesmo diante da patente constatação, resta entender que entre o Pai e as águas reside uma ininterrupta dinâmica de transformação. Quando, de maneira pendular, o Pai se aproxima ou se afasta das margens, ao observador externo revela posição definida, mas importa saber que deslocada das aparentes polaridades, existe uma terceira margem, resultante da relação do Pai com o rio.

Entre as inevitáveis margens do ler (receber) e escrever (doar), existem milhares de pontos de intercessão móveis, caóticos, descolados do pragmatismo racional de quem só enxerga duas margens e fruto de uma relação que aqui ouso chamar de “terceira margem do rio”. Aqui, a terceira margem pode até ser entendida como um objeto observável, mas só pode ser discernida na intimidade do Pai com o rio.

Sobre a minha vida? Há muito o que refletir, talvez nem tanto a dizer.

felipe valente