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Uma das coisas interessantes de buscar no texto bíblico é a ocorrência das primeiras vezes. Notar como algo é, pela primeira vez, introduzido à Bíblia Hebraica (BH) pode ajudar na compreensão de como um determinado tema (ou palavra) será desenvolvido. Um destes temas é o ofício profético. A primeira vez que a palavra profeta, navi’ (נָבִיא – que, junto com raiz respectiva, נבא, aparece mais de 600 vezes), aparece na BH é no livro de Gênesis, especificamente no capítulo 20. Ali, Abraão, em suas peregrinações, acaba habitando em Gerar, cujo rei, Abimeleque, se interessa por Sara.

Duas informações introdutórias interessantes:

1) Abimeleque pode ser, ao invés de um nome, um título – pai justo (אב מלך); 

2) Sara estaria por volta de 90 anos de idade e, considerando a promessa feita em Gênesis 17:21 e o cumprimento dessa promessa em Gn 21:1-3 –a saber, o nascimento de Isaque– poderia estar grávida quando ocorre Gênesis 20.

Abraão, assim como já havia feito no início de sua jornada, quando passou pelo Egito (Gênesis 12:10-20) mente sobre sua mulher e a chama de irmã. Muitas explicações são dadas para minimizar essa mentira (Sara seria sua meia-irmã; a palavra irmã, no hebraico, pode ser usada também para se referir à mulher amada, como em Cântico dos Cânticos; etc.), mas o fato é que parecia ser um péssimo hábito de Abraão enganar as pessoas quanto ao seu real relacionamento com Sara. Abimeleque se interessa por Sara e manda buscá-la, mas antes que consumasse qualquer ato com ela, DEUS aparece a ele em seus sonhos prometendo puni-lo caso não devolvesse a mulher a Abraão (Gênesis 20:3). A defesa de Abimeleque é construída sobre a mentira de Abraão e a sinceridade do rei em toda a situação (Gênesis 20:4-5).

Agora, quão estranha soa a resposta divina ao admitir a sinceridade de Abimeleque e, ao mesmo tempo, chamar o mentiroso Abraão de profeta? O primeiro profeta bíblico é assim denominado em uma situação de mentira, de engano. O uso da palavra profeta num contexto em que o homem assim denominado é um pecador, indica uma verdade poderosa: o profeta não é perfeito; o profeta é um ser falho. Não há a tentativa de explicar a mentira de Abraão ou racionalizá-la. A Bíblia lida com seus grandes personagens de maneira honesta: eles erram, mentem, pecam.

DEUS acrescenta uma outra informação interessante além de chamar Abraão de profeta: ele vai interceder por Abimeleque. O curioso é que o verbo interceder/orar (palal – פּלל) também aparece na Bíblia pela primeira vez em Gênesis 20:7. Este verbo, de onde o substantivo oração (tefilah – תפלה) é derivado, tem uma origem etimológica mais técnica: agir como advogado. Quer dizer, interceder/orar está ligado à idéia de agir como advogado. Assim, o primeiro profeta é também o primeiro intercessor! Obviamente Abraão já havia intercedido antes (principalmente no caso da destruição de Sodoma e Gomorra em Gênesis 18), mas aqui, além do linguajar técnico, há a ligação entre profeta e intercessão.

A ironia do que DEUS diz é perturbadora: aquele que colocou Abimeleque em posição de ser acusado é agora quem vai defendê-lo. E qual seria a defesa do advogado Abraão se não admitir sua própria culpa no ocorrido? Ou seja: o profeta é o advogado que assume a defesa e, para livrar o acusado, assume sua culpa.

A primeira função bíblica do profeta não é ter sonhos ou visões. Não é predizer o futuro ou proferir grandes sermões públicos. A primeira função bíblica do profeta é interceder, orar, agir como advogado do acusado e assumir o papel de culpado.