#32

Além de me lembrar do dia em que fui batizado, não me esqueço de tudo que girava em torno do acontecimento. Depois de algumas semanas acompanhado por uma irmã que direcionava os estudos básicos para os pretendentes ao batismo, fui questionado sobre todos os itens que poderiam se tornar um impeditivo, caso eu demonstrasse que não compreendera o suficiente ou, inusitadamente, não concordasse com os pontos de fé fundamentais ora propostos. Terminada esta etapa, meus familiares ficaram sabendo do meu aceite e ficaram empolgadíssimos com a realização do batismo. Embora eu não tivesse qualquer noção do que o futuro guardava, hoje em dia, cônscio das implicações da decisão, me deparo com os desafios inerentes à condição de membro de uma igreja, o que me faz questionar o sentido de toda a minha trajetória. Como poderia eu, no entanto, analisar minha experiência religiosa com distanciamento, se me é impossível sequer separar minha vida de minha prática religiosa, uma vez que homogêneo ao todo que sou a religião se constitui síntese?

Religião é palavra que padece de uma polissemia assustadora. Obviamente que em função do tempo histórico, do lugar social, da conjuntura político-econômica e um sem número de variáveis que aqui poderia considerar, ouso dizer que seus significados variam da paixão a um time de futebol até a adoração dirigida a um deus socialmente construído. Melhor dizendo, se deforma em significado quando observada a partir da lealdade político-partidária ou pela simples assimilação de hábitos supersticiosos. Complementarmente, ainda ilustrando, seus signos podem aflorar de qualquer laço que dê razão, pertencimento e cunstructo de identidade a um menino que se batizou numa igreja cristã no auge dos seus 13 anos de idade.

Entretanto, considerando apenas a origem etimológica, religião, oriunda do latim, aparece na igreja cristã medieval como um vocábulo ligado a dois possíveis verbos. O primeiro deles, mais popular, é conhecido como religare, que significa “juntar dois elementos, atar, apertar, religar”. O segundo, relegere, significa “reler, revisitar, relembrar, retomar o que estava perdido”. Ora, quanto ao segundo guardo especial estima, não somente por estar intimamente ligado à memória, mas principalmente por remeter à idéia de que existe algo constantemente carente de revisão/restauração.

Num tempo em que categorizar se tornou um árduo exercício, em função de suas vastas significações, a religião constitui um fascinante objeto de investigação. Não obstante, me aventuro dizer, que extrapolando qualquer aferição decorrente de tais categorias, o simples exercício de revisão do que constantemente se perde, torna o esforço teórico-metodológico um Everest à ser escalado. Melhor dizendo: sendo ela um ininterrupto resgate do esquecido, sua inflexão sobre a memória resgata o homem ao momento genesis de sua consciência e o refaz numa dialética processual, constante, como um filme, em que uma fotografia pode dizer muito, mas ao mesmo tempo nada.

Sob o agudo relativismo deste tempo, vivo eu, menino de 13 anos, que relê, refaz, resgata. Enquanto reviso o que me resta, aquEle que é impossível de ser categorizado e que não Se permite ser representado nem por nomes me visita nesta profunda agonia de existir. Sobre Ele, todas as categorias se revelam insuficientes, mas estranhamente a aflição decorrente desta busca torna o processo pedagógico e O revela como um imperativo absoluto.

Ele é minha memória, minha memória é Ele.