Na cultura judaica, o livro de Ester é dos mais conhecidos da Bíblia. Isto, porque é lido na íntegra uma vez ao ano na festa de Purim (פּוּרִים). A história do livro, entretanto, é motivo de intenso debate por sua difícil comprovação histórica, por não possuir referência ao nome de DEUS, ao Templo (o segundo), à terra de Israel, etc.
O livro foi escrito como uma espécie de sátira e, por isso, possui intensa caricaturização, recheada de ironia, sarcasmo e, obviamente, exagero. Por exemplo: a história começa com uma situação simples e que poderia ser resolvida na esfera privada, mas o não comparecimento da rainha Vasti à presença do rei acaba por se tornar um problema estatal que demanda intenso aconselhamento real e envolvimento da corte. A substituição da rainha é demorada e envolve todo o povo, quase um reality show. Já uma decisão séria, a de exterminar todo um povo (no caso os judeus) é tomada de maneira casual e leviana, sem reflexão alguma. Essa retratação visa desmoralizar a estrutura de poder persa. O próprio rei é pintado como um indivíduo fraco, dirigido por outros, que a todo momento é convencido por alguém de alguma coisa. A única coisa que parece funcionar no governo persa são os correios, que em um reino tão grande e vasto, conseguiam entregar os editos reais no mesmo dia.
Além disso, a narrativa do livro de Ester também é interessante, pois é construída em cima de tensões promovidas pela alternância de momentos de clímax com outros de anticlímax. Por exemplo: Mordecai salva o rei, mas logo na sequência do texto Haman (inimigo de Mordecai e do povo judeu) é elevado ao cargo máximo no reino – clímax seguido de anticlímax. Na continuação, o decreto de morte dos judeus é elaborado por Haman e assinado pelo rei que, de repente, acaba sendo lembrado dos feitos de Mordecai e o exalta às custas de Haman – anticlímax seguido de clímax. Esta alternância é um recurso novelístico-literário que visa prender a atenção do ouvinte/leitor.
Outro ponto importante na narrativa é o adiamento da solução do primeiro para o segundo jantar promovido por Ester. E neste ínterim, o rei acaba repetindo quatro vezes a frase “o que você deseja que seja feito”… e somente na última vez é que Ester responde de maneira a solucionar o problema.
Por fim, um aspecto altamente elaborado no livro de Ester é o uso constante de voz passiva e de construções passivas na língua hebraica. A sensação que o leitor tem com o uso deste recurso é que as coisas vão acontecendo aleatoriamente e que as personagens não têm o controle do rumo da história. O jogo de sorte – pur (פּוּר) – parece encontrar no uso da linguagem passiva o seu exato paralelo: o destino não pertence aos homens, mas ao acaso.
O momento ápice do uso da linguagem passiva, entretanto, é o momento ápice da própria história de Ester e sugere algo diferente. Em Ester 4:14 lemos: “porque, se de todo te calares agora, de outra parte se levantará para os judeus socorro e livramento (…); e quem sabe se para conjuntura como esta é que foste elevada a rainha?”. Aqui, Mordecai parece indicar que existe sim uma certa ordem, que na verdade, há uma linha sendo traçada e que o controle pode não pertencer aos homens, mas pertence a alguém maior que eles… Não se trata de acaso, mas de Providência! Como consequência disto, Ester, que guarda para si sua verdadeira identidade (2:10), toma a decisão de deixar de ser passiva na história e acaba se tornando um instrumento de salvação.
Quando se trata de salvação, não há acaso. Quando se trata de prover libertação, não há acaso. Quando se trata de tramas que visam dar fim ao Seu povo, não há acaso. DEUS está no controle. Ao mesmo tempo, é preciso que o passivo humano assuma sua identidade para se tornar um ativo divino e ser o instrumento pelo qual ELE operará.
O jogo com os nomes da personagem principal são relevantes aqui: A murta (Hadassa – nome hebraico) é também estrela (Ester – nome persa), mas somente age como tal, quando se lembra que não deixou de ser murta. A convivência desta dupla identidade é possível quando entendemos que existe um propósito divino guiando nossa vida. A convivência desta dupla identidade é possível quando uma, a murta, não é exterminada pela outra, a estrela. A convivência desta dupla identidade é o que DEUS acaba usando para salvar Seu povo.
Por fim, Mordecai, que no livro carrega apenas uma forte identidade judaica, é usado para lembrar Ester de seu papel e de sua dupla identidade. Ele não pede que Ester rejeite a corte e fuja com os judeus; tampouco pede que Ester abdique de quem ela tinha se tornado; ele pede que ela se torne um ativo divino e o instrumento de salvação.
A murta/estrela não precisa ser destruída. Não precisa ser corrigida e/ou disciplinada. Ela precisa ser lembrada que a história não se desenrola ao acaso e que a sua identidade completa precisa ser assumida. Quem sabe se não é para esta hora que DEUS a dirigiu?
[Obs: Estamos justamente nos dias 14 e 15 de Adar, dias de Purim! חג פּוּרים סמח]