Um personagem é sempre mais complexo do que suas ações narradas. Essa frase é quase um clichê em estudo literários, mas precisa ser relembrada constantemente para o iniciante no estudo da Bíblia. Isso, porque no seu afã de rotular os personagens, acaba, muitas vezes, reduzindo e simplificando-os.
É o caso de Jacó, por exemplo. Diversos sermões e comentários o classificam negativamente como “o enganador”, levando em conta apenas a passagem em que Esaú assim o declara: “Não é com razão que ele é chamado Jacó? Ele me suplantou essas duas vezes…” (Gênesis 27:36). Nesse jogo de palavras, Esaú manipula o nome de Jacó para servir ao seu propósito de retratá-lo de maneira negativa ao relacionar o nome יעקב com o verbo עקב (algo como “atacar insidiosamente”, ou “burlar”, etc). Entretanto, a explicação bíblica anterior para o nome de Jacó, em Gênesis 25:26, sugere outra direção. Por ter nascido logo após Esaú, segurando seu calcanhar (עקב – substantivo), Jacó significaria algo como “tornozelo”.
Um personagem como Jacó, desenvolvido ao longo de diversos capítulos, é reduzido a pecha de enganador justamente pela única frase de Esaú, um personagem que, em seus primeiros momentos na narrativa, é descrito de maneira negativa, como alguém que desprezava seu direito de primogenitura (Gênesis 25:34) e que escolheu mal sua esposa (Gênesis 26:34-35). O leitor, entretanto, escolhe esquecer essa condição de Esaú e validar seu discurso contra Jacó. Ora, se Esaú já havia vendido a Jacó sua primogenitura, por que ele se ira ao saber que Jacó a havia recebido? Não estaria Esaú errado ao não informar a seu pai do acerto que havia feito com seu irmão anteriormente?
Fato é que a grande maioria dos personagens desenvolvidos de maneira mais longa e elaborada no texto bíblico criam cruxes. Crux seria um elemento da narrativa que cria um debate intenso e que depende da maneira de interpretar do leitor. Quer dizer, se escolho usar uma lente negativa para enxergar Jacó na narrativa, diversas de suas ações serão julgadas dessa maneira. Se escolho vê-lo de maneira positiva, obviamente será desta maneira que suas ações serão julgadas. O narrador bíblico se utiliza desse espaço narrativo, o gap, para envolver os leitores em um debate sobre o personagem. Diversos personagens são construídos assim na Bíblia.
Essa técnica é diferente do narrar erros e acertos (Jacó definitivamente erra ao mentir para seu pai sobre quem era, em Gênesis 27, por exemplo); se trata de deixar espaços em situações sem um claro juízo moral (por exemplo, comprar a primogenitura foi acertado ou não?).
O que o leitor maduro entende é que sem um claro juízo de valor na narrativa, não se deve determinar um rótulo fixo para eles. Jacó, em sua primeira descrição, é chamado de תּם, “perfeito” (Gênesis 25:27). Já Esaú surpreende por sua amabilidade para com Jacó quando eles se reencontram (Gênesis 33). A escolha do leitor determinará sua visão do personagem; é, entretanto, necessário maturidade para compreender que o personagem está em algum espaço além de suas ações e dos rótulos que as discussões sobre elas poderão gerar. Isso, porque não temos sempre na Bíblia (de maneira intencional) coisas simples como motivação, pensamentos internos, etc. Por exemplo: por que Jacó insistiu em comprar a primogenitura de Esaú? Seria porque ele sabia da profecia dada por Deus à sua mãe? O texto deixa o espaço para que os leitores respondam e participem da narrativa bíblica ativamente.
Por isso a leitura do texto bíblico é sempre um convite a pensar, ponderar, analisar, se envolver… É um convite para relacionar-se.