#210

Muitas vezes as leituras feitas a respeito e a partir da Bíblia Hebraica (BH) levam em consideração aspectos como os mencionados no ultimo texto (#207) para concluir que a BH é patriarcal, corroborando uma tese de um machismo estrutural também na sociedade israelita da época bíblica.[1]

 

O termo “patriarcado” tem sido usado para criticar o papel dos personagens femininos da BH desde o século 19. Obviamente o termo em si não aparece na BH e seu conceito deriva das Ciências Sociais, sendo o uso do termo, em língua inglesa, atestado a partir do século 17 com cunho político/social. Sua origem etimológica é grega e significaria algo como “a regra do pai”, ou “a cabeça do pai”. Seu significado é múltiplo e difícil de definir. A ideia varia desde indicar apenas um sistema em que o homem (macho) domina até a afirmação de que todas as mulheres eram escravizadas. 

 

Apesar do interesse de antropólogos pelo funcionamento da sociedade e família israelita bíblica, poucos acadêmicos da literatura bíblica se debruçaram sobre o tema até o século 20. Talvez a obra mais emblemática desse despertar seja a do padre francês Roland de Vaux, “Ancient Israel”, publicada no final da década de 50 e início da década de 60 em francês e depois em inglês. Nesse livro ele declara que a família retratada na BH era patriarcal e que o homem (o pai) era senhor sobre a mulher, sua esposa, com absoluta autoridade sobre ela, inclusive poder de vida e morte. Essa visão se tornou abrangente para descrever não só a família, mas também a sociedade israelita bíblica, talvez por influencia da visão de Max Weber. Essa mudança de uma descrição patriarcal familiar para uma noção abrangente de patriarcalismo estrutural fica mais clara na obra de Norman Gottwald, “As tribos de Yahweh”. 

 

O conceito predominante desde então é de que a família e a sociedade israelita estão construídas sobre o modelo patriarcal. Essa visão do patriarcalismo bíblico se adequa às próprias fundamentações do feminismo da segunda onda, que define o patriarcado como: “o domínio masculino sobre a mulher e sobre as crianças na família e a extensão desse domínio do homem sobre a mulher na sociedade” (Gerda Lerner). Assim, o patriarcalismo significa, em última instância, “a dominação de todo homem sobre toda mulher” (Schussler Fiorenza). A leitura feminista da BH sob essa ótica ainda é dominante em muitos círculos. Entretanto, abaixo segue uma visão mais bíblica do papel da mulher na própria BH, e não uma visão oriunda das ciências sociais. 

 

O estudo da família e da sociedade israelita da época bíblica depende em sua maioria dos poucos textos bíblicos que tratam do assunto, bem como de achados arqueológicos. Os achados arqueológicos, entretanto, não revelam como era a dinâmica social e é a interpretação desses achados que, em alguma medida, pode auxiliar a este estudo.  

 

Esses achados e sua interpretação revelam que a mulher era responsável pelo que se convencionou chamar de “atividades de manutenção”. Essas atividades eram as básicas do dia-a-dia e essenciais para a estabilidade da casa e da vida comunitária. Atividades de manutenção incluíam economia, política e religião, além das coisas internas da casa. As mulheres eram responsáveis, entre outras coisas, por processar comida, produção têxtil, feitura e uso de ferramentas (para costurar, moer, fazer cerâmica, etc). Como ponderou Carol Meyers: “Muitas dessas atividades eram não apenas consumidoras de tempo e fisicamente exigentes, mas também tecnologicamente sofisticadas”. Provavelmente as mulheres dominavam o uso e a invenção das tecnologias da sociedade israelita bíblica. 

 

Além dessas atividades, as mulheres também dominavam a esfera doméstica no que tange a comida e também na engenharia da casa (desenho, cálculos, ampliações, etc). Dependendo da idade e da experiência, a mulher israelita tinha funções gerenciais, supervisionando as tarefas e os recursos nas suas casas e também na sociedade. Dificilmente poderiam ser consideradas oprimidas, sem poder ou frágeis. Dificilmente também poderiam ser consideradas subordinadas ao homem da casa nos aspectos descritos acima. A mesma Carol Meyers afirma: “Então, para muitos (mas não para todos) processos caseiros no Antigo Israel, a união marital era como uma parceria”. Os homens dominavam alguns aspectos, as mulheres outros. 

 

Um número considerável de textos bíblicos dá suporte a essa ideia. O que será visto no próximo texto. De maneira introdutória, no entanto, é possível afirmar que a mulher israelita da BH descrita hoje por estudiosos de diversos campos não parece condizer com a realidade bíblica. A mulher da BH não era oprimida e subserviente, ou “recatada e do lar”, em uma versão mais próxima. Ela era livre e dona de si, parceira do seu marido. Embora ambos, marido e esposa, desempenhassem funções diferenciadas na sociedade, ela tinha uma gama variada de atividades que a tornavam, no contexto do Antigo Oriente Médio, uma figura muito peculiar. 

 

 

 

[1] Todo esse texto é um resumo das principais ideias contidas no artigo “Was Ancient Israel a Patriarchal Society?”, de Carol Meyers, publicado no Journal of Biblical Literature, vol. 133, n. 1, de 2014.