#207

Gênesis 1:26-28 fala da criação da humanidade em termos reais (veja #49, por exemplo). A criação de macho e fêmea ocorre concomitantemente. Ambos recebem a mesma função (realeza) e são imagem e semelhança de DEUS, com as mesmas ordens, inclusive. Em Gênesis 2:4-25 o homem e a mulher são criados em momentos distintos, ambos imitando o Criador em funções distintas (cuidar e guardar; ser ajudadora) e estão unidos fortemente. Nos dois relatos a atuação de ambos não carrega nenhum tipo de superioridade[1]. Gênesis 3 marca uma mudança no papel da mulher na narrativa.

 

Na maior parte das vezes as mulheres na narrativa bíblica não são nomeadas e quando o são, é porque desempenham um papel negativo na história. Elas, as mulheres, são personagens absolutamente secundárias nas narrativas. Entretanto, aqui ou ali temos uma personagem feminina como protagonista: Raabe, Débora e Jael, Ester, Rute, Naomi. Muito raramente a Bíblia Hebraica (BH) menciona o nascimento de um personagem feminino e todos os anúncios de nascimento dados a uma mulher estéril são de homens. O caso de Diná, filha de Jacó, cujo nome não é explicado e nem sua descendência relatada, diferentemente de todos os seus 12 irmãos, é emblemático. Mesmo a morte das mulheres na BH é relatada somente quando a história envolve algo importante para o personagem masculino da história.

 

Recentemente Yair Zakovitch chamou à atenção para um detalhe curioso: mesmo nos livros dedicados inteiramente a mulheres, como Ester e Rute, o início e o fim são narrativas de personagens masculinos; em Ester o livro abre com Assuero e termina com Mordecai; em Rute o livro começa com Elimeleque e termina com Davi. 

 

A igualdade entre homem em mulher em Gênesis 1-3 meio que desaparece. No Éden a mulher aparece livre para andar e agir (Gênesis 3 parece indicar isso), mas depois disso, uma mulher que anda livremente e age sem ser referente a seu marido, é raríssimo. Tudo parece derivar do famoso texto: “para seu marido será o seu desejo e ele governará sobre você” (Gênesis 3:16). 

 

Todas essas constatações parecem levar a crer que a BH é um livro machista e a narrativa reflete apenas essa sociedade patriarcal. Essa ideia será explicada em um próximo texto. Agora convém apontar que em Cântico dos Cânticos (CdC) há uma reversão dessa aparente ordem.

 

Curiosamente a voz feminina é a mais presente em CdC, pois em cerca de 117 versos, mais ou menos 62 são dos discursos da mulher e somente 33 do homem, num claro desbalanço. Em CdC é a mulher que toma a iniciativa da fala e das ações e na maioria esmagadora das vezes o homem apenas responde às ações e falas dela. Ela não apenas fala com ele, mas fala sozinha também em alguns monólogos. Somente em dois momentos a chamada “palavra final” é do homem, pois em todos os outros é ela que também conclui os diálogos. A presença da mulher em CdC é tão forte e dominante que alguns estudiosos sugerem uma autoria feminina para o livro inteiro. 

 

Ou seja, diferente de toda a narrativa da BH depois de Gênesis 3, em CdC a mulher é a personagem principal. No texto #119 apontamos diversas semelhanças entre os dois livros, agora apontamos uma diferença marcante. Em CdC 7:11 se lê: “Eu sou do meu amado; e para mim é o desejo dele”. Tanto em Gênesis 3, quanto em CdC 7, a palavra para desejo é a mesma. Entretanto é importante notar a diferença do discurso. Em Gênesis 3 é dito que o desejo da mulher será do marido, mas em CdC 7 o desejo do marido é para a mulher. 

 

Essa inversão é vital para se entender Cântico dos Cânticos e a própria ideia bíblica para o relacionamento entre homem e mulher. Ela, a mulher, se declara sendo do marido, mas afirma que o desejo dele é dela. Quer dizer, em um relacionamento de amor, o castigo de Gênesis 3 não existe. O amor entre homem e mulher, o verdadeiro amor, a verdadeira entrega, anula a punição. O amor reverte tudo e faz com que a mulher tenha seu papel e seu lugar de fala garantidos.

 

Cântico dos Cânticos é em si revolucionário por dar vazão aos desejos sexuais da mulher, à sua proeminência na fala, inclusive erótica. Essa forte presença feminina em CdC levou inclusive a tradição judaica a afirmar que o sexo é um direito da mulher e um dever do homem (uma clara inversão de valores em relação à nossa sociedade machista atual). Entretanto, a maior revolução em Cântico dos Cânticos é mostrar que o amor restaura e transforma; que o verdadeiro amor entre homem e mulher anula séculos e milênios de opressão da mulher e lhe devolve ao seu lugar de origem. 

 

 

 

[1] O argumento de que o homem foi criado antes da mulher em Gênesis 2 e por isso seria superior a ela é tão infantil que seguí-lo implicaria em concluir que a humanidade é inferior aos animais, pois esses foram criados antes do homem e da mulher em Gênesis 1.