#206

Alguns detalhes bíblicos são muito curiosos. Um deles talvez seja o aspecto da descrição dos personagens. Raramente um personagem é descrito detalhadamente e o mesmo ocorre também em relação a paisagens. Em Cântico dos Cânticos (CdC), no entanto, isso é revertido. As descrições são minuciosas, não apenas dos personagens, como também dos cenários em que estes se encontram. Alguns poemas de CdC, chamados de wasf, são conjuntos de metáforas descritivas dos corpos dos amantes, feitas por ambos. Ou seja, neste sentido, entre as narrativas bíblicas e o CdC há uma inversão. Essa é, aliás, uma de várias inversões entre as diversas narrativas bíblicas e CdC.

 

Outra inversão se dá quanto à beleza. Beleza não é uma característica muito presente na Bíblia Hebraica (BH), a não ser que ela se torne importante para alguma narrativa. Por exemplo, só se sabe que Sara é bonita no contexto da viagem de Abraão ao Egito, quando ele “mente” a respeito dela ser sua irmã (veja o texto anterior, #205). Abigail (1 Samuel 25:3) já é apresentada como formosa e sensata, apesar de estar casada com Nabal. No final ela acaba se tornando esposa de Davi. Bate-Seba é descrita primeiro em termos de formosura, antes mesmo de seu nome ser mencionado e, obviamente, sua beleza leva o rei Davi ao pecado (2 Samuel 11). O filho de Davi, Amon, deseja a própria irmã, porque ela era bonita (2 Samuel 13). A beleza de José em Gênesis 39 acaba lhe causando problemas com a mulher de Potifar e o fato da mãe de José ser também declarada bela, acaba por ocasionar o desprezo de Jacó por Lia (Gênesis 29). Aparentemente, todas as descrições de beleza são carregadas de alguma negatividade, o que parece concordar com Provérbios 31:30: “Enganoso é o charme e vã a beleza”. Mais uma vez isso é contrastado em CdC, pois neste livro a beleza é exaltada o tempo todo e sem nenhum tipo de negatividade: “Eis que é formosa, ó querida minha(…).” (1:15); “Como és formoso, amado meu (…).” (1:16).

 

Por fim, um último exemplo de inversão aqui se refere ao amor. A ideia de amor entre homem-mulher na BH não é comum e, na maioria das narrativas, carrega negatividade. Jacó ama Raquel e esse amor (mais a beleza de Raquel) é responsável pelo desprezo por Lia. Elcana ama Ana e isso acaba por ser um problema para a própria Ana, pois a outra mulher de Elcana zombava dela. Histórias de estupro contém “amor”: Diná em Gênesis 34 e Tamar em 2 Samuel 13. Sansão ama as mulheres erradas e isso acaba por ser a sua derrocada. Salomão ama as mulheres estrangeiras e isso acaba desviando-o do caminho. O amor só é positivo nas narrativas, quando mencionado após o casamento. Por exemplo, Isaque e Rebeca em Gênesis 24; Ester e o rei (Ester 2:17). Essas duas ocorrências são basicamente, as exceções. Em CdC o amor é altamente positivo e percorre todo o livro, desde antes do casamento[1], permanecendo depois também. 

 

Em diversos aspectos, Cântico dos Cânticos é uma inversão de um modelo anterior. As coisas como eram são transformadas e invertidas. Mas a maior de todas as inversões será apresentado no próximo texto.

 

Cântico dos Cânticos é o livro em que a descrição física, a beleza e o amor são plenos, presentes e sempre positivos.

 

 

 

 

[1] Diversos estudiosos marcam o texto de Cântico dos Cânticos 4:16-5:1 como a consumação do casamento.