#205

Muitos estudantes iniciantes da Bíblia Hebraica (BH) têm a pretensão de achar um único e inequívoco sentido para o texto (ou os textos) que estudam. A “certeza” de que existe apenas uma maneira correta de ler o texto é, infelizmente, derivada da arrogância e da ignorância de tais estudantes, pois quanto mais experientes no estudo da BH se tornam, mais certos estarão de que a ambiguidade não só é um “problema” recorrente no texto, como muitas vezes até mesmo um recurso comum utilizado pelo narrador ou poeta. 

 

Um primeiro exemplo de ambiguidade tanto na narrativa quanto na poesia é o uso da expressão “irmã”. Michael Fox já argumentava em 1985 que a expressão era comum e conhecida na poesia de amor egípcia. Sendo assim, é possível que os egípcios realmente tenham sido enganados com seu uso por Abraão em Gênesis 12 e que o próprio Abraão a tenha usado com esse propósito. Assim, “irmã” implicaria não somente um laço sanguíneo para os egípcios, mas também uma palavra de conotação sexual-afetiva por seu uso na literatura poética. 

 

Essa ambiguidade no uso de “irmã” também se faz presente em Cântico dos Cânticos (CdC). Em diversos momentos o homem/amante[1] chama a mulher/amante de irmã, claramente com sentido sexual-afetivo, como em CdC 4:9-10: “Arrebataste-me o coração, minha irmã, noiva minha (…). Que belo é o teu amor, ó minha irmã, noiva minha (…)” (ARA). O amor do homem em CdC é dirigido à sua irmã, não no sentido literal incestuoso. A expressão “irmã” carregaria um sentido de profundo conhecimento e companheirismo, ainda que no sentido erótico. Já em CdC 8:8, por exemplo, ela é chamada de “irmã” por seus irmãos, em teoria, em uma relação realmente sanguínea.

 

Um segundo exemplo de ambiguidade, agora mais específico a CdC, é a incerteza quanto à realidade. Algumas passagens se parecem com sonhos ou fantasias, mas não há indicação direta de que se trata do relato de um sonho, como em outras partes da BH (Daniel 2, 4, 7, etc, por exemplo). Em CdC 3:1-5 e em 5:2-6:3 parece que a mulher está dormindo e sonha, mas não é possível afirmar isso com certeza. Há nesses textos e em outros do livro, um clima de fantasia, com mudanças bruscas de um ambiente para outro, de uma realidade para outra, dando a nítida impressão de se tratar de um sonho. As próprias palavras também estão carregadas de ambiguidade, com duplos sentidos diversos e abundantes (ver textos #116 e #117 para alguns exemplos).

 

Yair Zakovitch afirmou: “Os poemas de Cântico dos Cânticos são charadas e uma charada pode ter mais de uma resposta.” A ambiguidade de Cântico dos Cânticos eleva o livro a um patamar de elegância e beleza ímpares e faz com que o leitor/intérprete mantenha a mente aberta para diversas possibilidades. Leitores que se contentarem com apenas uma leitura do texto perderão a beleza da mensagem e falharão em perceber o humor e a profundidade do conteúdo. 

 

Se a Bíblia toda fosse lida e apreciada da mesma forma como CdC deveria ser, a ambiguidade de certas passagens deixaria de ser um problema a ser resolvido e se tornaria uma característica a ser incorporada na existência religiosa. Toda a ambiguidade e a multiplicidade interpretativa aponta para uma realidade que, infelizmente, se tornou fantasia: o amor é maior que uma interpretação. 

 

 

 

[1] no sentido de serem um casal que se ama