Uma série de textos anteriores já lidou com alguns aspectos literários de Cântico dos Cânticos (#116 #117 #118 e #119) e nessa nova sequência, mais uma vez esse livro fantástico será o tema central. Em um primeiro momento serão trabalhadas algumas ligações interessantes com outros textos da Bíblia Hebraica e, em um segundo momento, o papel da mulher será abordado de maneira específica.
Dentre as diversas ligações intertextuais de Cântico dos Cânticos (CdC), as com uma gama de textos de Gênesis sempre chamam mais à atenção, principalmente pelas ligações entre os jardins (abordado em #119, mas superficialmente). Por exemplo, a palavra “mandrágoras” aparece somente duas vezes na Bíblia Hebraica (BH), justamente em Gênesis 30 e em CdC 7.
Na narrativa do relacionamento conturbado de Jacó com suas duas mulheres, Raquel e Lia, desde o início há um jogo de palavras que é retomado em CdC. Jacó encontra Raquel em um poço de água (Gênesis 29) em uma cena que parece ser uma repetição da história da mãe de Jacó, Rebeca, que também fora encontrada em um poço de água (Gênesis 24). Aliás, Robert Alter aponta como certas cenas se repetem diversas vezes, numa espécie de modelo; nesse caso, Rebeca, Raquel e Zípora (uma das sete filhas do sacerdote de Midiã) são introduzidas na narrativa bíblica junto a um poço de água.
A sequência da história em Gênesis 29 mostra os verbos “beber” e “beijar” (Gênesis 29:10-11), sendo que é Jacó quem dá de beber à Raquel e a beija. Em CdC 8:1-4 a ordem é invertida, primeiro o “beijar” e depois o “beber”, sendo a mulher a executora das ações. Yair Zakovitch acrescenta que em todos os quatro casos (Gênesis 24 e 29; Êxodo 2; e CdC 8), a cena do encontro e do “dar de beber” é seguida de movimento em direção a alguma casa.
Essas ligações todas enfatizam ainda mais a conexão entre as mandrágoras de Gênesis 30 e de CdC 7. Em Gênesis 29-30 a sequência é “dar de beber”, “beijar”, convite para ir à casa, e “mandrágoras”. Em CdC 7:10-8:3 a ordem é “mandrágoras”, “beijar”, convite para ir à casa e “dar de beber”. Somente nesses dois textos há a repetição de todos esses elementos.
Voltando às mandrágoras, o contexto das duas é sexual, mas as nuances implicam uma visão da realidade sexual do relacionamento homem-mulher bem distintas. Em Gênesis 30:14-18 as mandrágoras, consideradas afrodisíacas, são usadas em um arranjo entre as irmãs Raquel e Lia: Raquel pede as mandrágoras para Lia (Ruben, filho de Lia as tinha achado no campo) e em troca permite que ela, Lia, se deite com Jacó naquela noite. A frase de Lia para Jacó é extremamente forte: “Esta noite me possuirás, pois eu te aluguei pelas mandrágoras de meu filho” (Gênesis 30:16). Basicamente, Jacó é um objeto sexual na disputa entre as irmãs e as mandrágoras são a moeda de troca entre elas nesse episódio. Não há desejo ou amor, há um acordo, um negócio. O verbo usado śakar (contratar, pagar, compensar), fortifica a ideia de comércio.
Já em CdC 7:10-13 as mandrágoras aparecem na fala da mulher em que ela se declara ao amado (“Eu sou do meu amado” CdC 7:10) como algo a ser aproveitado juntos, também com conotação sexual, mas sem nenhum tipo de negociata envolvida. As mandrágoras são, nesse contexto, expressão de entrega, companheirismo e prazer entre ambos. Portanto, apesar de serem dois contextos claramente sexuais, as mandrágoras são usadas de maneiras completamente distintas em Gênesis 30 e em CdC 7.
A visão de sexo em Gênesis é nitidamente uma negociação por filhos, em que o sexo é secundário e não é um fim em si. A mulher enxerga o marido como um objeto sexual e o usa com a finalidade de produzir descendência. Já em CdC o sexo é um fim em si e é feito para prazer e deleite de ambos, sendo que a mulher enxerga seu amado como um parceiro.
A primeira narrativa, de Gênesis, é carregada de negatividade por envolver uma disputa desenfreada das irmãs pelo amor de Jacó e pela necessidade de ganhar uma disputa pelo número de filhos. Em CdC, a “narrativa” poética é carregada de positividade por envolver o desejo de uma mulher e de um homem de viverem a experiência plena de serem amantes e apenas amantes.
O sexo como arma (Gênesis 29-30) é substituído pelo sexo como sinônimo de amor e entrega (Cântico dos Cânticos).