Como foi visto em um texto anterior, a estrutura de Gênesis 1:3 a 31 aponta para uma unidade coesa entre os seis dias, que formariam um bloco indivisível. Essa unidade literária é quebrada no início de Gênesis 2, quando o autor não utiliza nenhum refrão anterior. Ainda que retome alguns verbos (“criar”, “fazer”, “abençoar”) e a expressão “céus e terra”, há uma clara cisão textual que marca o sétimo dia:
E terminou os céus e a terra e todo seu exército.
E terminou Deus no dia sétimo o seu trabalho que tinha feito
E descansou no sétimo dia de todo o seu trabalho que tinha feito
E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou
Porque nele descansou de todo o seu trabalho que tinha criado Deus para fazer [1]
Durante todo o relato, as ações de DEUS são dirigidas à criação. Há sempre algo acontecendo que envolve os três elementos de Gênesis 1:2 – terra desértica e sem vida; escuridão; águas. Aqui, em Gênesis 2:1-3, entretanto, a ação não possui ligação com o que é criado, pois a criação está terminada. A ação está relacionada ao próprio DEUS. No sétimo dia, diferentemente dos outros seis, Ele faz algo em relação a si mesmo: descansa.
Como se lê acima, o sábado é abençoado e santificado em virtude da ação de DEUS de descansar. O verbo usado aqui, שׁבת (šbt), tem seu significado relacionado à ação de cessar alguma atividade. Essa cessação, no entanto, não implica em uma simples pausa momentânea, mas no fim de todas as ações relacionadas a cessação: “A referência é consistentemente à cessação de uma atividade prévia, ou o fim de um processo que chegou à sua conclusão e que não foi meramente interrompido temporariamente”, esclarece E. Haag na página 385 do Theological Dictionary of the Old Testament.
No contexto de Gênesis 1:1-31, Gênesis 2:1-3 evoca exatamente o fim completo de uma ação, a ação da criação. O verbo usado, šbt, visa exatamente acentuar a sensação para o leitor de que houve uma atividade específica. Assim, além da forma literária, o uso do verbo indica rompimento.
A cessação da atividade é seguida pelas ações de abençoar e santificar, ambas em troncos de ação intensiva no hebraico. O fim da atividade de criar é marcado por um dia inteiro que é em si abençoado e santificado. Portanto, embora o sétimo dia esteja diretamente ligado à obra anterior a ele por indicar exatamente a cessação dela, ele é diferente em essência por indicar o fim.
Entretanto, em Gênesis 8:22, por exemplo, DEUS indica que algumas coisas não mais cessariam em momento algum, usando o mesmo verbo šbt. Mesmo em textos onde šbt é usado para falar das festas ligadas à colheita ou das festas solenes, como a atividade não termina definitivamente – apenas há o fechamento de um ciclo e início de outro -, talvez o significado de šbt inclua um outro elemento: o da celebração. O ciclo termina e é celebrado e então um novo ciclo começa. שׁבת (šbt) é, portanto, o fim e a celebração desse fim, ao mesmo tempo marcando que haverá um novo começo – sétimo dia é o fim do ciclo criativo e o indicativo de que haverá um novo começo.
Há, ainda, duas questões interessantes e necessárias em torno desse “descansar” de Gênesis 2:1-3. A primeira é que a ação é somente divina, e a segunda é que embora o entendimento do verbo esteja relacionado à cessação da obra da criação e à celebração da mesma, o que de fato acontece nesse dia, o sétimo? Em Gênesis, as questões em torno do sábado não são discutidas e é somente em Êxodo que elas parecem ser explicadas.
Êxodo 20:8-11 apresenta um caminho que ajuda a facilitar o entendimento das questões colocadas. Nesse primeiro momento, apenas a primeira ideia será analisada. Vejamos o texto:
(A) “Lembra-te do dia de sábado para o santificares;
(B) Seis dias trabalharás e farás todo teu trabalho;
(C) Mas o sétimo dia é sábado para o YHWH, teu DEUS; não farás nenhum trabalho: nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo nem tua serva, nem teu gado, nem o teu estrangeiro que está nas tuas portas;
(B’) Porquê em seis dias YHWH fez os céus, a terra, o mar e tudo que está neles;
(C’) E Ele descansou no sétimo dia;
(A’) Portanto YHWH abençoou o dia de sábado e o santificou” [2]
Em negrito está o verbo santificar, que aparece no início do quarto mandamento e no final. Primeiramente é dito que quem deve santificar o sábado é o homem [3], e na última parte do mandamento quem santifica (ou santificou) o sábado é DEUS. Novamente, a relação do imitatio Dei (imitação de Deus) reaparece: o homem faz porque Deus fez (ou faz). A construção textual do mandamento, inclusive, proporciona uma clara visão disso. A primeira parte, Êxodo 20:8-10, trata exclusivamente de ações do homem: o homem santifica (v. 8), faz (v. 9) e não faz (v. 10). Já a segunda parte (Exôdo 20:11) é toda relativa às ações divinas: Ele fez, Ele descansou e Ele santificou. Basicamente, a ação humana é resultado da ação divina.
A primeira questão levantada pode finalmente ser respondida. Apesar de Gênesis 2:1-3 apresentar o foco do sábado somente na ação divina, o princípio do imitatio Dei, tão presente em Gênesis 1 e 2 (entenda mais aqui e aqui) é trazido à tona em Êxodo 20:8-11. Ao mencionar a criação como base do sábado do sétimo dia, Moisés estabelece que o que Ele faz é, em si, um convite para que eu faça.
A benção do sábado e sua santidade, no entanto, estarão sempre conectadas primariamente à ação divina. A minha participação nessa benção e nessa santificação se dá se o obedeço, imitando-O.
Este texto foi originalmente publicado no site Notícias Adventistas e pode ser encontrado aqui.
[1] Tradução e versificação próprias.
[2] As marcações e a disposição espacial não fazem parte do texto massorético, mas foram acrescentadas para ajudar no entendimento.
[3] Curiosamente, todo o discurso é construído em segunda pessoa singular, ou seja, o endereçado é o “tu”, o mais pessoal possível em qualquer fala.