#200

É fim de primeiro semestre de 2016, sala do curso de teologia, 3º ano. Um professor, dos que mais admiro, reúne a turma para assistir a um filme: Spotlight. Um drama biográfico a respeito da equipe de jornalismo investigativo do The Boston Globe, laureada com o Prêmio Pulitzer por Serviço Público em 2003 por despir ao mundo o sistemático acobertamento dos casos de pedofilia no interior das paróquias de Boston. O que mais me marcou em todo o filme foi a frase dita por uma personagem, justificando o silêncio da comunidade (que estava ciente dos casos, mas que os ignorava pelo papel social que a Igreja desempenhava nela): “É preciso um bairro inteiro para abusar de uma criança.”

 

Isso jamais saiu de minha cabeça e me ensinou algo que considero universal: para exercer violência, basta ser humano. O debate que segue, no contexto eclesiástico, portanto, é desafiador, mas necessário: Somos nós também, enquanto comunidade religiosa, capazes deste tipo de corporativismo? A resposta a essa pergunta tem dois “sim”; um evidentemente negativo e outro positivo (e até mesmo indispensável).

 

Começo pelo segundo “sim”. Ele decorre de um aspecto essencial da literatura profética bíblica: a vulnerabilidade. Aparentemente, ser vulnerável é parte inerente de ser profeta. O profeta, mais que aquele que revela o futuro, é aquele que vê o que DEUS vê e diz o que DEUS quer dizer. Durante esse processo o profeta, enquanto indivíduo, muitas vezes não entende nem concorda com o que DEUS mostra. Ele testemunha daquilo que vê enquanto ao mesmo tempo protesta contra aquilo que vê: mais usualmente, violência praticada no meio e por seu povo e a enérgica –quiçá apaixonada– reação de DEUS em favor dos que sofrem a violência, contra seus opressores, não importa quem sejam.

 

Esse protesto é essencial para a profecia porque é imperativo que o profeta sinta compaixão (ou seja: sofra junto com quem sofre). Ele precisa sentir na pele o que sente um DEUS indignado com a violência humana. E não há como sentir sem ser vulnerável. Logo, se, como Igreja, acreditamos ser um movimento profético, então deveríamos ser um movimento inerentemente vulnerável. Mas somos?

 

A realidade é que há violência em nosso meio, o que nos leva de volta ao primeiro “sim” da questão inicial. Sim, mesmo enquanto cristãos, somos capazes de praticar violência e sistematicamente acobertá-la. E aqui é importante não naturalizarmos esse fato com chavões do tipo “onde há seres humanos, há erro”,  “somos um hospital de feridos”, etc. Tudo bem. Somos tudo isso. Mas se esta realidade falhar em gerar em nós indignação com a violência, ou –pior ainda– se estas frases cumprirem o objetivo de anestesiarmos ao ponto que não toquemos no assunto, não reflitamos a respeito, e, por fim, utilizemos a máquina corporativa pra calarmos os casos específicos de pessoas que sofreram ou sofrem violência, definitivamente não estamos cumprindo com nosso papel profético. Ainda mais caso esse silêncio institucional provenha de uma preocupação com a preservação de uma imagem eclesiástica imaculada, quer seja individual ou coletiva, pois em termos proféticos não há nada mais nefasto do que violência transvestida de sacrifício ou zelo. “Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.” Isaías 1:15

 

Precisamos reajustar nossas preocupações. É devastador constatar, por exemplo, que as igrejas nunca falaram tanto em proteger a família, os valores cristãos e os bons costumes, mas que ao mesmo tempo estejamos tão distantes de verdadeiramente sensibilizarmo-nos com a violência que alguns entre nós tem sofrido no seio de nossas congregações e instituições. De nada adianta incentivar a quebra do silêncio apenas para, logo em seguida, silenciar os que o quebram, simplesmente porque o fazem contra uma liderança eclesiástica ou instituição religiosa. Seria essa a violência suprema? De nada adianta se preocupar com o conceito substantivado da família brasileira, enquanto sufocamos pela violência e pelo silêncio os indivíduos que a integram.

 

O que de mais profético deveria haver no cristianismo atual deveria ser a capacidade de sentir a dor humana, pois é exatamente no epicentro dessa dor que o profeta se encontra com DEUS. Um verdadeiro senso de empatia e compaixão em nossas relações e nossa postura frente à violência sejam, talvez, as principais formas que hoje temos de demonstrar que ainda carregamos a Sua voz. Seremos vulneráveis? 

 

 

Bruno Bastos