No texto anterior (#196), foi apontada a ênfase bíblica na ideia da palavra escrita e sua leitura. Uma outra ênfase interessante na Bíblia é contar e repetir. É uma espécie de modelo alternativo para a leitura. Em Êxodo 12 e em Deuteronômio 6, no estabelecimento da Páscoa, por exemplo, as comemorações futuras deveriam precisamente conter o ato de contar toda a história da Páscoa para as crianças. Basicamente, a observância plena da Páscoa incluía a repetição da história da Páscoa para que todos soubessem o porquê daquela celebração.
Em Êxodo 12:26-27 a forma desse estatuto está resumida, enquanto em Deuteronômio 6:20-24 está mais expandida. Tanto em uma quanto em outra, no entanto, a história não deve ser contada como um ensinamento, uma aula. Não deve ser contada à revelia da vontade da criança, como se fosse uma obrigação. Nos dois textos é a criança que deve perguntar primeiro. A ideia do contar não está associada ao “falar ao vento”, mas, sim, ao desejo de ouvir e saber mais. Possivelmente, ao observar todos os preparativos e as festividades envolvidas na festa da Páscoa, a criança sentiria curiosidade e então perguntaria aos pais sobre tudo aquilo.
Como já visto em outro momento (textos #12 e #26), Páscoa é memória. Ao recontar a história, inclusive, deve-se colocar em primeira pessoa do singular ou do plural: “quando DEUS nos tirou do Egito”, “eu era escravo no Egito”, etc. Sem a repetição da história, não há memória e, portanto, não haverá significado para o presente.
Não há nada místico nesse contar e repetir. Há apenas o fator identitário. A história dos meus antepassados é o que me faz ser eu: “É somente através de ouvir e contar a história que eu posso me identificar com meu ancestral, experimentar o que ele experimentou. Eu sou o sujeito da história, mas não através de alguma projeção existencial que me deixa nu e privado do presente e me coloca em uma relação direta com o evento passado; é, ao invés disso, uma maneira muito mais simples e óbvia de afirmar que descendo dessas pessoas, que também descenderam de outras; elas são minha carne e sangue. Eu estou implícito porque se eles não tivessem sido salvos do Egito, eu não estaria escutando essa história agora. E, escutando a história, eu posso vislumbrar a minha própria miraculosa existência. É nesse sentido que eu, que estou aqui agora, no presente, estava também lá, no passado”. (Gabriel Josipovici)
Lembrar o passado é contar e repetir; e isso se torna conhecimento de DEUS.
Esse contar e repetir não é um retorno nostálgico ao passado, mas uma afirmação de que a ação divina de então proporcionou o presente. O presente não deve ser aprisionado pela memória, pelo contrário, a memória é justamente a convicção de um presente de liberdade. Hoje sou livre porque ontem fui liberto. Essa liberdade dada a mim através da ação divina na história dos meus antepassados bíblicos causa em outros a curiosidade de saber o que me torna tão livre e tão pleno. Ao ser indagado, eu conto e eu repito como me foi contado e repetido.
Contar e repetir as histórias do Livro me liga à Bíblia e à DEUS.
O que eu sou hoje por eles que ontem foram, fará com que outros sejam, porque eu fui.