Desde que se começa a estudar literatura, ainda nas aulas de Língua Portuguesa do agora Ensino Fundamental, um destaque importante é dado ao autor e ao momento histórico em que ele viveu ao escrever sua obra literária. Muitas vezes as aulas de Literatura, tanto no Ensino Médio, quanto na Faculdade de Letras, se tornam mais uma análise de contextos socioeconômicos e históricos do que análise literária propriamente dito. É evidente que isso tem o seu valor. A história de vida do autor, seu lugar de origem, o país em que vivia, as circunstâncias sociais, tudo isso pode ajudar a entender melhor a obra, ou nuances dela.
Por exemplo, saber que Ferreira Gullar estava exilado quando escreveu o famoso Poema Sujo é vital para entender o final dele, principalmente. Depois de anos fora do Brasil, morando em Moscou, Santiago e Lima, ele estava em Buenos Aires quando finalizou o poema com as palavras:
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas
A cidade –o Rio de Janeiro– estava com ele, nele, ainda que ele estivesse em outra cidade, mas ao mesmo tempo não estava. Essa leitura baseada no contexto e que está presente no poema, pode auxiliar na compreensão, mas não revela uma conclusão mais aprofundada: o poeta está no poema e o poema está nele, mas de maneiras distintas.
Quer dizer, o contexto histórico, socioeconômico, etc., me ajuda a entender literatura, mas não resolve tudo. Se uma obra literária é aprisionada por esses contextos externos a ela, ela dificilmente resistirá como uma peça de arte para além de seu tempo. O Poema Sujo permanece porque trata mais do que do exílio de um homem e de sua saudade, trata de, entre outras coisas, autoria e identidade: o poeta está no poema, mas é maior do que ele ao mesmo tempo em que o poema carrega o poeta, mas também é maior do que ele.
Nos estudos da Bíblia, essa relação com o autor é explorada a exaustão. Tentativas e mais tentativas são feitas de identificar o autor (ou autores) e a época em que os livros foram escritos, sempre na esperança de que isso leve a uma compreensão melhor dos textos. Dois pontos são importantes: 1) as tentativas são inconclusivas em grande parte das vezes, quer seja por elementos históricos escassos, ou porque o olhar do pesquisador está carregado de pressupostos que lhe afetam a leitura; 2) o autor(es) parece quase fazer questão de não se identificar. Robert Alter chama à atenção para essa segunda questão em diversas de suas obras, afirmando que essa ausência do autor é um fator complicador mas, ao mesmo tempo, peculiar.
Há, portanto, quase uma busca pelo anonimato. O autor bíblico parece não querer se identificar e nem especificar quando escreveu. Entretanto, como dissemos, o autor está na obra. Pode-se perceber isso por seu estilo, o uso de certas palavras, as repetições, a visão de mundo. Seu anonimato é quase uma declaração de que seu nome não importa, e que no texto ele será encontrado, mas não descoberto. Você, leitor, só conhecerá o autor de 1 e 2 Samuel, por exemplo, se relacionando (lendo) o texto bíblico de 1 e 2 Samuel.
A ausência do contexto autoral proporciona uma sensação interessante, pois por não saber quem escreveu, quando, etc., aumenta o valor da leitura e da interação com todas as nuances do texto em si.