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“E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de dar à luz; toma, pois, a minha serva; porventura terei filhos dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. (Gênesis 16:2)

 

A história é conhecida. Sarai, mulher de Abrão, não podia ter filhos. A primeira vez em que DEUS aparece a Abrão, estabelece com ele uma aliança (Gênesis 12:1-3) e no bojo da aliança está a promessa de que este seria pai de uma grande nação. Em seguida, na ocasião em que Abrão e seu sobrinho Ló se separam, DEUS aparece pela segunda vez e repete a mesma promessa, mas desta vez utiliza uma ilustração que intensifica a promessa: a descendência de Abrão seria numerosa como o pó da terra, de modo que nem poderia ser contada (Gênesis 13:16). Mais adiante, depois da narrativa do resgate de Ló (breve relato de uma guerra entre reis que habitavam a mesopotâmia), DEUS reaparece a Abrão e diz que seu galardão seria grande. Abrão, já impaciente, reclama que continuava sem filhos e que o mais proximo que chegara de um herdeiro era o damasco Eliezer, seu mordomo. Pela terceira vez, DEUS reforça a promessa, mas desta vez apresentando a descendência de Abrão como as estrelas do céu, que, igualmente ao pó de Gênesis 13, também não podem ser contadas. Ele creu e isto lhe foi imputado por justiça (Gênesis 15:5 e 6). Até aqui, todas as vezes em que DEUS apareceu a Abrão, a confirmação da aliança contemplava a ele, mas não a Sarai. 

 

Dito isto, voltando ao texto inicial, embora o desenrolar da história aponte para diversos atores presentes na narrativa, revelando inclusive suas falas e objeções diante de DEUS, a serva que surge no capítulo 16 não possui voz. Sarai fala, Abrão acata sua sugestão (aparentemente sem oferecer resistência) e Agar simplesmente gera um filho afim de que o casal materialize a promessa feita por DEUS na aliança. Embora nossa compreensão esteja contaminada do conhecimento do final da história, é importante percebermos que até aqui, tudo aparenta ser razoável. DEUS faz uma aliança com Abrão, este recebe uma promessa que é três vezes confirmada, mas Sarai não é incluída. Valendo-se de um costume daquele tempo, Sarai oferece sua serva. 

 

Todavia, por mais que nossas razões sejam naturais, invariavelmente produzem violência. O resultado é que Agar, por portar em seu ventre o filho que teoricamente cumpriria a promessa feita por DEUS ao casal, não se sujeita mais à sua senhora, respondendo ao ciclo de violência gerado pela racionalidade de Sarai. Agar é maltratada, foge da presença de sua senhora na direção do deserto e lá, em meio à sua aflição, é encontrada pelo Anjo do Senhor. Curiosamente, o momento do encontro coincide com o momento em que a voz da serva é ouvida. Agar é vista por DEUS de um modo que Abrão e Sarai não são capazes de enxergar. 

 

O Anjo pede para que ela retorne e se sujeite novamente a Sarai. Mais adiante, embora a narrativa revele que o filho de Agar não seria o filho da promessa feita no capítulo 12, no deserto da aflição de Agar DEUS lhe faz uma promessa. À semelhança do filho da promessa, o filho da serva será uma nação incontável e se chamará Ismael, que significa “DEUS vê”. (Gênesis 16:10-11).

 

Ao contrário do que muitas vezes pensamos, não estamos completamente entregues às nossas tragédias pessoais, às violências que praticamos uns aos outros e às dores que  muitas vezes nos são impostas. Por misericórdia, DEUS também atua na nossa história corrigindo a violência que se encontra na estrutura de toda e qualquer relação humana.