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No relato da Criação, as primeiras palavras que DEUS dirige ao homem e à mulher são uma bênção cujo início abriga três imperativos: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra…” (Gênesis 1:28). Deste modo as criaturas são convocadas a expandir, por meio da atividade reprodutiva, a obra do Criador. A fala divina introduz o tópico da geração de descendentes, uma das linhas de força no livro de Gênesis, que atravessa suas narrativas e se torna ainda mais visível nas diversas genealogias descritas nele. Enquanto as listas genealógicas confirmam a multiplicação dos seres humanos ao exibir o desfile das gerações num ritmo linear, algo reforçado pelo caráter formulaico do registro, as narrativas patriarcais guardam uma circunstância que desafia o cumprimento daquele mandato inaugural: a presença recorrente da esterilidade. Esta condição desestabiliza a progressão natural desenhada nas genealogias, pois estabelece um limite incontornável à capacidade humana de gerar, solicitando, assim, uma intervenção divina. 

 

Sarai é a primeira personagem bíblica apresentada como estéril (Gênesis 11:30), o que alimenta uma tensão formidável com o fato de seu marido Abrão receber a promessa divina de que ele seria o pai de uma grande nação (Gênesis 12:1-3)[1]. Ao longo da trajetória do casal, os dois se empenham em resolver essa questão, porém as sucessivas revelações de DEUS ao patriarca mostram que, a fim de concretizar o Seu anúncio inicial, Ele delineou uma resolução que não cabia nas possibilidades humanas. Para entender a singularidade da ação divina na gravidez de Sara[2], basta comparar as descrições que o narrador oferece acerca do processo de concepção em Gênesis 4, onde são registrados os primeiros nascimentos da história humana, com o relato de Gênesis 21:

 

“Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a Caim…” (Gênesis 4:1)

 

“E coabitou Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a Enoque.” (Gênesis 4:17)

 

“Visitou o SENHOR a Sara, como lhe dissera, e o SENHOR cumpriu o que lhe havia prometido. Sara concebeu e deu à luz um filho a Abraão na sua velhice, no tempo determinado, de que DEUS lhe falara.” (Gênesis 21:1-2)

 

Nos dois primeiros textos, apenas homens e mulheres são agentes diretos no exercício reprodutivo e a sucessão de verbos traduzidos como “conceber” e “dar à luz” reflete o potencial humano[3]. No último texto, a referência a DEUS já ocupa o princípio da passagem, ressaltando que é Ele quem age de forma decisiva para que Sara possa enfim gerar o filho de Abraão; logo, o nascimento de Isaque reflete o potencial divino. A visita do Senhor permite que a vida germine onde se estendia o deserto da esterilidade. Se as condições naturais impedem a propagação da vida, somente um milagre é capaz de libertá-la. As histórias seguintes de Gênesis também demonstram isso porque outros filhos da promessa são gerados unicamente devido à ação divina, algo que o narrador sublinha nas trajetórias de Rebeca (Gênesis 25:21), Lia (Gênesis 29:31-32; 30:17) e Raquel (Gênesis 30:22-23). O surgimento da linhagem que dá origem ao povo de Israel é um notável testemunho das maravilhas que DEUS cultiva no solo das impossibilidades humanas.

 

Além disso, os eventos ligados à maternidade de Sara fornecem uma sequência que pode ser identificada em vários relatos presentes na Bíblia: DEUS ou um representante divino anuncia a chegada de um descendente para membros de um casal incapaz de gerar filhos, o que efetivamente se cumpre na sucessão da narrativa. Apesar das peculiaridades relativas a cada episódio, esse enredo aparece nas histórias de Manoá e sua esposa (Juízes 13), Ana (1 Samuel 1), a mulher de Suném (2 Reis 4:8-17) e Zacarias e Isabel (Lucas 1:5-25). A coleção de passagens confere o status de motivo bíblico ao nascimento que é fruto de um milagre, assinalando que o Criador ainda atua para garantir às Suas criaturas a chance de perpetuar a vida. Entretanto, João Batista, filho de Zacarias e Isabel, não é a última criança bíblica gerada a partir da intervenção divina. Na verdade, todos esses nascimentos milagrosos de certo modo prefiguram o maior de todos eles, o nascimento de Jesus, que também foi anunciado por um mensageiro divino e venceu um limite natural situado acima da esterilidade, pois Maria concebeu embora fosse virgem (Lucas 1:26-38). Portanto, Jesus é o superior filho da promessa, uma vez que Sua chegada cumpre uma série de profecias e reafirma a disposição divina para derrubar as barreiras que se opõem à concepção da vida, restaurando homens e mulheres ao propósito original. Para salvar a família humana marcada pela esterilidade da morte, o Filho de DEUS nasce.

 

As páginas dos Evangelhos ainda reservam mais um anúncio de nascimento maravilhoso. É sobre ele que o Mestre fala na Sua desconcertante resposta à saudação de Nicodemos: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de DEUS” (Jo 3:3). Nascer de novo é uma experiência necessária a quem almeja participar do Reino, mas o ser humano é estéril para gerá-la. Conscientes da sua impotência, as pessoas reagem espantadas como Abraão (Gênesis 17:17), Sara (Gênesis 18:12), Zacarias (Lucas 1:18), Maria (Lucas 1:34) ou Nicodemos (João 3:4 e 9) quando recebem a notícia de um nascimento impossível segundo as leis naturais. Diante do questionamento humano, DEUS aponta que a solução habita em Seu poder: “Acaso, para o SENHOR há coisa demasiadamente difícil?” (Gênesis 18:14). Sim, todos os membros da família do Reino, tal qual Isaque, foram concebidos por causa da visita do Senhor: “Mas, a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no Seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (João 1:12 e13).

 

 

Jayme Alves

 

 

[1] Sobre essa tensão na história de Abraão, é recomendável a leitura do texto #64 da TMR.

[2] DEUS muda tanto o seu nome quanto o do seu marido num encontro narrado em Gênesis 17.

[3] Entre os capítulos 4 e 21 de Gênesis, há diversas maneiras de narrar a geração de descendentes, no entanto somente humanos comparecem na superfície textual de todas elas.