Gênesis 1:1-2:3 contém uma série de possibilidades de análise. A vastidão de lidar com um texto sobre origens é uma pequena parte, até superficial, se comparado ao universo ideológico esperando para ser descoberto em cada frase, verso, refrão, etc. Perder-se na vastidão de um texto curto: este trecho proporciona isso.
Uma das facetas interessantes do texto é a criação dos alimentos e da própria ordem de se alimentar. [1] No terceiro dia da Criação, segundo Gênesis 1:9-13, DEUS ajunta as águas debaixo dos céus em um lugar para que apareça uma porção seca. O nome dessa parte seca: terra (ארץ – ʼereṣ). Logo na sequência, já no verso 11, é nesta terra que brotaria vegetação, ervas/plantas que produzissem sementes, árvores frutíferas que produzissem frutos, cada um segundo sua espécie. A repetição das mesmas palavras entre o verso 11 e 12 apenas indica que tudo aconteceu de acordo com a vontade de DEUS. Um aspecto curioso nesta pequena repetição é que a criação, pela primeira vez no relato, seria uma criação que continuaria criando. A vegetação, as plantas, as árvores e seus frutos…tudo continuaria, através da semente, se renovando. A face da terra, desta terra que no verso 9 nada mais era do que uma porção seca, agora é cheia de uma espécie de vida que se perpetuaria nas sementes que continham. No quinto dia (Gênesis 1:20-23) e no sexto dia (Gênesis 1:24-28) os seres viventes criados também se reproduziriam; e, após a criação do ser humano e da ordem de também se multiplicarem e se renovarem e também da ordem para que governassem sobre a criação, DEUS lhes indica qual seria seu alimento. A co-regência seria a marca da humanidade. DEUS, como Rei supremo, cria um súdito à Sua imagem e semelhança para que ele governe aquela criação –a Terra– como ELE governa o universo.
Gênesis 1:29-30 apresenta uma alimentação para o ser humano e para os animais que seriam governados por ele. A co-regência tem duas ordens primárias: multiplicar, governar. A co-regência tem uma primeira dádiva: o alimento. A estrutura do texto é bem simples e interessante. Um verbo, dar (נתן – natan) e três complementos diretos, ou seja, três grupos alimentares (ervas que produzissem semente; frutos de árvores que produzissem semente; ervas verdes) para dois grupos de criaturas (ser humano; todos os outros seres vivos). Essa arrumação do texto foca em um aspecto crucial: o importante não é o alimento em si, mas a dádiva de DEUS! Ou seja: o centro, no caso, é que é ELE quem dá e não especificamente o que ELE deu.
O aspecto a ser realçado na primeira construção da relação Regente e co-regente é que ELE dá! A vida do co-regente e de toda a criação só será possível porque ELE cria o alimento e dá ao criado a possibilidade de se alimentar dele.
A alimentação é, portanto, uma indicação de reconhecimento de DEUS como Regente, como Criador e do meu papel, como imagem dEle, de co-regente.
Nesse sentido, Daniel, no capítulo 1 de seu livro (Daniel 1:8-17), se recusa a comer da comida do rei Nabucodonozor. Não tanto pelos pratos que seriam servidos, mas pelo conceito de que ele não poderia se alimentar da comida dada por qualquer outro rei a não ser o Rei de todo o universo. O comer e o beber da mesa seriam um reconhecimento de que ele seguia ao rei… No entanto ele decide seguir ao Rei.
O motivo porque a alimentação é importante no nosso relacionamento com DEUS é mais do que qualidade de vida; mais do que para nos comunicarmos melhor com ELE; é porque reconhecemos nosso Rei e nos alimentamos de Sua dádiva… de Sua graça…
Alimento é graça. Graça que une criaturas no reconhecimento de um Criador.
[1] A primeira vez que atentei para essa particularidade foi na leitura do livro Blessed are the Hungry, de Peter Leithart. Aliás, leitura altamente indicada.