#177

Para Mia Couto[1] “o importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora”. De fato, a sensação que se tem, é a de que existe uma casa dentro de nós, e mal sabemos explicar como ela foi ali parar. Para alguns, casa é sinônimo de segurança, um lugar de paz, onde o melhor e o pior se evidenciam; mas e para texto bíblico

 

A primeira vez, das 1708 vezes em que a palavra “casa” aparece na Bíblia Hebraica (BH) é no livro de Gênesis, quando DEUS ordena a Noé:

 

Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos e a calafetarás com betume por dentro (‎מִבַּ֥יִת) e por fora (וּמִח֖וּץ)” (6:14) (ARA).

 

Os substantivos em destaque poderiam ser traduzidos por “casa” e “rua”. Interessante pensar que a palavra casa, em sua primeira ocorrência, é utilizada pelo próprio DEUS e que seja definida como o lugar de dentro da arca. O oposto seria rua, fachada, qualquer outra coisa indefinida, mas diferente de ou antagônico à “casa”. A realidade “casa” não estava acessível aos olhos curiosos dos que passavam pelo lado de fora da arca por que “casa” na Bíblia é mais do que aquilo que os olhos podem ver, mais do que aparência externa, mais do que uma bela fachada; para ver “casa” é preciso entrar.

 

A próxima aparição de “casa” também aparece no contexto do imperativo divino em Gênesis 7:1 quando DEUS diz:

 

Entra na arca, tu e toda a tua casa (בַּיִת), porque reconheço que tens sido justo diante de mim no meio desta geração (ARA).

 

Agora Noé deveria pegar a sua “casa” e entrar na “casa”. Novamente é o próprio DEUS que usa a palavra, ampliando agora seu significado. O plano para salvar a humanidade parece simples: um encontro entre “casas”. Na planta da embarcação chama à atenção a ausência de um convés ou de uma área externa para passeio. Mesmo nos dias sem chuva –muito mais frequentes do que os em que choveu, de fato– o único lugar possível para a casa de Noé era dentro de casa. Não bastava entrar em casa, era preciso permanecer e viver toda a experiência do lado de dentro.

 

Parece que esta não é uma história de dias de chuva versus dias de sol, nem mesmo de construtores de um barco versus espectadores, tampouco dos que ouvem a voz de DEUS versus os que não a ouvem; a questão da salvação aqui, parece simples: Vai entrar em casa, ou não?

 

Já no Novo Testamento a palavra “casa” aparece pela primeira vez em Matheus 2:11:

 

Entrando em casa (οἰκία) viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram. (ARA)

 

Lucas também narra este episódio, chamando o lugar em que Jesus nasceu de manjedoura (φάτνη), que pode ser traduzido como um lugar fechado para animais. Já para Matheus, Jesus nasce em casa; e haveria lugar melhor? Para salvar o mundo o plano parece o mesmo, um encontro entre casas.

 

Em ambas as histórias há um movimento de fora (onde se está) para dentro (onde se deveria entrar): animais, os do oriente, famílias… enfim, todos, para o encontro com uma salvação sempre inclusiva e coletiva.

 

O mesmo vazio que senti/sinto de um lugar, uma casa, talvez Jesus tenha enxergado no coração dos discípulos quando lhes prometeu a casa (οἰκία) do Pai (João 14:2). Sua própria casa. A última casa. A parte dele: entrar em casa (santuário celeste) para possibilitar que nossa casa fique limpa. A nossa parte: deixar que Ele entre. Ele está à porta de casa e bate (Apocalipse 3:20), insistindo pacientemente. “Casa” acontece do lado de dentro e tudo o que Ele quer é entrar, para que haja um encontro entre casas. Fica a impressão que Ele nunca se deu muito bem com fachadas. No fim, pouco importa a casa em que morou, quão bela ou espaçosa; importante, mesmo, é onde, em nós, a casa mora…

 

 

Lúcio Pereira

 

 

 

 

 

[1] Mia Couto, pseudónimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano.