#176

Além de Gênesis 3, somente em um outro lugar na Bíblia encontramos um animal dotado com a capacidade de se comunicar de maneira articulada, a dizer em Números 22, a jumenta de Balaão. Tanto a jumenta quanto a serpente surpreendentemente falam de maneira natural. Nenhum dos dois animais explica sua habilidade, e em contrapartida, esta capacidade de falar é aceita inquestionavelmente por parte dos seres humanos.

 

Contudo, embora a interrupção animal no mundo humano da fala seja tratada com estilo similar, o conteúdo dos discursos é contrastante em muitos aspectos. Um deles é a relação entre bênção e maldição.

 

Enquanto nas maldições de Gênesis 3:14-19 o universo perfeito criado nos capítulos anteriores começa a ser “deturpado” como consequência dos esforços da serpente, culminando com a expulsão de Adão e Eva de um lugar de segurança e estabilidade para um de peregrinação errante e vulnerabilidade, a história de Balaão move na direção oposta. Depois do êxodo do Egito, Israel ainda está peregrinando, mas em direção a um local permanente. Israel está vulnerável a ataques, inclusive do rei Balaque em Números 22. Depois de ter seus olhos abertos, Balaão não só deixa de tentar amaldiçoar Israel, como profere bênçãos sobre o povo. Em um dos oráculos de Balaão (Números 24:5-7a), lemos:

 

Que boas são tuas tendas, ó Jacó!
Que boas são as tuas moradas, ó Israel!
Como vales que se estendem,
como jardins à beira dos rios,
como árvores de sândalo
que o SENHOR plantou,
como cedros junto às águas.
Águas manarão de seus baldes,
e as suas sementeiras terão águas abundantes;

 

Embora este simbolismo não seja exclusivo de Balaão[1], o contexto aqui apresenta contrastes com algumas imagens presentes em Gênesis 2-3. A utilização da imagem de árvores ecoa à descrição do jardim, plantado por DEUS, com rios de água fluindo, e árvores agradáveis em Gênesis 2:8-10. As árvores em Gênesis são fonte de vida e conhecimento. Contudo, a árvore do conhecimento, proibida ao ser humano, gera contenda, perdas, e o desaparecimento da inocência; enquanto que o distanciamento da árvore da vida está associada a exílio e morte. Mas, mesmo que após a desobediência o homem só tenha se distanciado destas árvores, agora no oráculo Israel é associado a elas. Como se em um processo de tentativa de retorno à harmonia original.

 

Em Gênesis 2-3, o pó sofre uma transformação similar às árvores. O que antes estava associado à criação, o material com do qual o ser humano é formado, agora posteriormente aparece relacionado a conotações não tão favoráveis nas maldições de Gênesis 3:14-19. Obviamente não somente na maldição sobre a serpente, mas principalmente sobre o fato do homem voltar ao pó. Contudo, o oráculo em Números 23:10 inverte essa conotação de pó de morte (Gênesis 3:19), para uma metáfora de nascimento e regeneração, algo não restrito a Balaão. Contudo, sua presença aqui pode ser vista, somada aos detalhes anteriores (e ainda outros) como uma resposta à maldições no Éden. Pó não é somente o material da criação do ser humano, mas o símbolo da proliferação de Israel.

 

Por fim, o par de palavras “abençoar-amaldiçoar” presente em Números 22:6 24:9 merece distinção. Vemos que o que antes estava enfatizando o sujeito da ação na fala do rei Balaque (“a quem tu abençoares será abençoado e a quem tu amaldiçoares será amaldiçoado” – 22:6), agora se relaciona ao objeto, Israel (“bendito os que te abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem” – 24:9). Após ter os olhos abertos, Balaão percebe que o destino daquele que abençoa está relacionado ao objeto da bênção. Aquele que supunha ter o controle sobre Israel, agora vê sua autonomia limitada diante do povo de DEUS.

 

Oposto ao que vemos em Gênesis, maldição no que antes era bênção, em Números 22-24 vemos DEUS transformando em bênção o que era para ter sido maldição.

 

Seja em Gênesis 3 ou em Números 22-24, mesmo após a desobediência, vemos DEUS lutando pelos seus, na tentativa de reestabelecer a harmonia original através da bênção da aproximação.

 

 

 

[1] Encontramos imagens similares, por exemplo, em Jeremias 17:7-8; Ezequiel 47:12; Salmo 1 e 92.