#172

“Estais calado. Mesmo neste momento, vós ficais calado?”
Silêncio, Shusaku Endo

 

Em Jeremias 28 é possível ver nuances do que é não ser um verdadeiro profeta.

 

Profeta aqui, como já apresentado em textos anteriores, é aquele que, segundo o texto bíblico, tem como suas palavras a palavra de DEUS, que não consegue lidar com injustiça e opressão e que, com e por amor, intercede. Contudo, todo aquele que se sente parte desse coro profético, muitas vezes, corre o risco de se confundir.  Pensar que suas vontades são a vontade de DEUS. Que sua voz, é a voz dEle (quando deveria ser o contrário).

 

Vários motivos podem resultar nesta catástrofe profética narcisista, e um deles, talvez um dos primeiros, a falta de autocrítica, do auto-questionamento. Do alto de seu status pseudo-profético não mais questionam a “biblicidade” de suas próprias empreitadas.

 

Voltemos à Jeremias. DEUS, no capítulo 27 (sugiro lê-lo junto ao 28), pede para que Jeremias fizesse canzis (jugos) e os colocasse sobre o pescoço. Além disso, o profeta deveria enviar outros aos reis de Edom, Moabe, ao rei dos filhos de Amom, ao rei de Tiro, e ao rei de Sidom. Esta encenação serviria a um propósito: “Agora, eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei da Babilônia, meu servo; e também lhe dei os animais do campo para que o sirvam” (verso 6). O povo de Israel deveria aceitar a submissão à Babilônia. Isso era consequência da infidelidade do povo para com DEUS. Resultado direto da quebra da aliança. Na sequência, acrescenta-se que ninguém deveria dar ouvidos aos profetas e adivinhos que dissessem que não deveriam servir à Babilônia porque, segundo o texto, profetizam mentira (verso 9 e 10). De modo contrário, a nação que “meter no pescoço o jugo do rei da Babilônia”, não sofreria com a fome, peste ou espada (versos 7 e 11).

 

Assim, temos o pano de fundo para o capítulo 28. Basicamente, Hananias, também profeta, aparece com uma mensagem dizendo que o jugo da Babilônia seria quebrado, e dentro de dois anos os utensílios do templo seriam trazidos de volta. Jeremias responde a Hananias, contradizendo-o, e na sequência, Hananias arranca o jugo de sobre os ombros de Jeremias e o despedaça ao chão, afirmando: “Assim diz o SENHOR: Deste modo, dentro de dois anos, quebrarei o jugo de Nabucodonosor, rei da Babilônia […]”(verso 11).

 

Obviamente que esta cena é surpreendente. Não só por Jeremias aparecer em frente àquele que pregava o fim do jugo, enquanto Jeremias ainda andava com o jugo. Não só pela resposta irônica de Jeremias à profecia de Hananias: “Amém! Assim faça o SENHOR; confirme o SENHOR as tuas palavras, com que profetizaste […]” (verso 6). Não só pela encenação de Hananias (quebrar o jugo de Jeremias), uma reversão da encenação de Jeremias. Mas, principalmente, pela reação de Jeremias. Após arrancar seu jugo e quebrá-lo na frente de todos, o texto diz: “E Jeremias, o profeta, se foi, tomando seu caminho”. Como assim?! Ele não havia recebido a mensagem de DEUS para fazer o jugo, usá-lo, e pregar que deveria haver submissão à Babilônia? E não foi ele mesmo que pregou, segundo às palavras de DEUS, que quem profetizasse diferente era um mentiroso? Porque, então, Jeremias não “cuspiu” todas aquelas informações na cara de Hananias diante de todo povo?

 

A diferença é simples e sutil. Hananias falou como alguém que sabe de tudo. Mas, para Jeremias, poderiam haver informações que ele não soubesse.

 

Basicamente, Jeremias, apesar de ter ouvido há pouco tempo o que DEUS esperava do povo, ponderou e pensou: “Não sei de tudo, talvez algo tenha mudado nos planos…”. Jeremias questiona seu próprio conhecimento, sua própria experiência. Por quê? Porque conhece o DEUS perdoador que age na história. Ele sabe que não pode simplesmente confiar no seu conhecimento. Ele volta, para ouvir outra vez. Hananias não. Curioso é que existe a possibilidade de que Hananias até tenha tido alguma espécie de raciocínio bíblico. Em Isaías 10:27, numa profecia, DEUS promete quebrar o jugo Assírio sobre os ombros do povo. Se isso aconteceu contra a Assíria, contra a Babilônia será o mesmo, pode ter pensado Hananias. O único problema é que a Babilônia não é a Assíria. Israel não deveria viver na ilusão de incondicional segurança. O povo deveria suportar as consequências de seus atos.

 

Comentando sobre este episódio de Hananias e Jeremias, Martin Buber[1] afirma: “Não é que os falsos profetas não tenham um deus. Eles adoram o deus do ‘sucesso’. Eles próprios estão em constante necessidade de sucesso e o alcançam prometendo-o ao povo. […] Os verdadeiros profetas […] sabem que dez sucessos não são nada além de sucessos que conduzem à frustração, por outro lado, dez derrotas podem, somando, alcançar uma vitória, desde que o espírito permaneça firme.”

 

O verdadeiro profeta, questiona a si mesmo, mesmo que seu “sucesso” aos olhos do povo seja arruinado.

 

 

 

[1] On the Bible (2000, p.170).