#171

“Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus.”
Romanos 2:13

 

O caminho trilhado por Jesus –mais tarde chamado de Cristianismo– é um caminho marcado pela morte. Hoje, no século 21 e no Ocidente, o imperativo para “tomar a cruz” confunde. Como viver uma vida marcada pela morte se não existe perseguição? E é nesse contexto de conforto que a Bíblia é lida em nossos dias. A leitura através das lentes do conforto é interessante. Ela tende a ignorar ou adocicar textos que confrontam o conforto estabelecido. E quão próprias são as Palavras de Jesus para nosso atual contexto de conforto.

 

No centro dos ensinamentos de Jesus está a vivência do que foi ensinado. Jacques Ellul no livro The Subversion of Christianity aponta o óbvio: ao ensinar sobre o homem que constrói uma casa na areia e na rocha Jesus estava buscando ensinar e enfatizar que no final das contas apenas a prática é que importa. Jesus termina o sermão da montanha com a parábola dos construtores dizendo: “todo aquele que ouve as minhas palavras e as pratica será comparado…”

 

Nós conhecemos a história do homem que constrói na areia e do homem que constrói na rocha, mas esquecemos que o principal ensinamento ali contido é apenas este: que ouvir apenas não é suficiente.

 

Nossa leitura confortável da Bíblia resulta numa prática confusa dentro do contexto religioso e eclesiástico. Uma das mais recentes pesquisas do grupo Barna indica que 61% de adolescentes (geração Z) sentem que encontram DEUS fora da igreja, e 64% entendem que a igreja não é relevante para sua vida pessoal. Parte do problema, talvez, seja o conforto de leituras confortáveis que não apresentam um contraponto nem à cultura vigente, nem às inúmeras tradições incoerentes dentro do próprio contexto religioso.

 

A Bíblia nem sempre é um livro confortável. Aliás, raramente o é.

 

Ainda assim, apesar dos pesares, a única coisa que pelo menos deveríamos manter viva nas nossas comunidades religiosas é a maneira como tratamos uns aos outros, tanto os de dentro quanto os de fora. De todos os pecados religiosos modernos, esse talvez seja o maior. É como um pregador em nossa comunidade recentemente disse: se existe uma profecia que a comunidade religiosa tem sistematicamente cumprido é a de que o amor se esfriará.

 

E é nesse contexto de leituras confortáveis, de uma religião de ouvir e não fazer, que talvez a bem aventurança relacionada à pureza de coração seja relevante. Numa cultura religiosa voltada para atos e pureza externas, Jesus do alto da montanha diz: “Felizes são os puros de coração, pois verão a Deus” (Matheus 5:8). Jesus aqui não está instituindo um novo rito de pureza, mas está falando de uma pureza que vai além do externo, uma pureza de coração.

 

Mas o que poderia significar essa pureza? Provérbios 22:11 diz “o que ama a pureza de coração e é grácil no falar terá por amigo o rei,” e Salmo 24:3-4 diz: “quem subirá ao monte do Senhor… o que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega sua alma a falsidade, nem jura dolosamente.”

 

Sabendo que nas bem aventuranças Jesus está restaurando os princípios da religião antiga, sabendo que a cultura da época enfatizava esses ritos como medida de santidade, é interessante notar como pureza também é importante no discurso de Jesus. Em Provérbios e Salmos essa pureza não se trata de algo abstrato mas está diretamente ligada a relações. Ao jurar dolosamente, à falsidade, à palavras dóceis. Pureza de coração pode ser entendida nesse ângulo como uma transparência diante do DEUS que purifica corações (lembre de Salmo 51) que resulta numa transparência diante uns dos outros. Se me abro diante de DEUS, se nada está oculto em minha relação com Ele, o resultado disso será uma vida transparente e sincera diante do outro. Pureza é transparência, e tal transparência só é alcançada através da atuação do DEUS que não podemos ver.

 

Podemos pensar que a falta de transparência em nossas relações seja um pecado de pequeno porte, mas quando Jesus fala de pureza de coração ele fala de uma transparência –perante um DEUS que tudo vê– que resulta numa transparência uns para com os outros. Logo, a falta de clareza, de transparência, de vulnerabilidade e honestidade em nossas relações pode ser entendida como uma continuidade de uma falta de clareza, transparência, vulnerabilidade e honestidade diante de DEUS.

 

Mas não queremos ler isso na Bíblia, queremos uma leitura mais confortável. Queremos saber que ficar sem Netflix por um dia, orar mais, deixar o açúcar por um fim de semana e sublinhar nossa Bíblia com várias cores diferentes resultará em pureza de coração. Agora quando a pureza tem a ver com a maneira como me abro ao DEUS que purifica corações e consequentemente com a maneira como trato outros… fica complicado! Pois esse é o verdadeiro sacrifício, essas são as pequenas mortes que marcam o verdadeiro caminho aberto e trilhado por Jesus.

 

Proximidade e vulnerabilidade perante o DEUS que tudo vê resulta numa pureza de coração que se estende nas relações desse lado do trovão. A maneira como tratamos uns aos outros pode estar intimamente ligada à maneira como nos apresentamos, sozinhos, diante de DEUS.

 

E Paulo resume bem… os simples ouvidores –e suas leituras confortáveis do texto– não são justos diante de DEUS, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Cabe a nós agora determinar se nossa construção religiosa, se nossa eclesiologia de vida, será construída sobre a rocha do ouvir e fazer, ou nas areias instáveis do ouvir confortavelmente, apenas.