“O essencial é invisível aos olhos”. Saint-Euxpéry
Considerando a presença do marcador textual Lech Lecha (sai-te) podemos dividir a narrativa abraâmica em pelo menos dois momentos cruciais, nos quais o verbo ra’ah (ver/olhar) desenvolve um papel estrutural.
Lech Lecha aparece pela primeira vez em Gênesis 12:1, texto no qual o ainda Abrão é convidado a participar de um movimento; movimento esse que parece ser do concreto para o não-concreto; do palpável para o intangível. Abrão é chamado a abandonar o seu passado: “sai da casa de teu pai” (Gênesis 12:1). Nesse sentido ele passaria a viver uma realidade bem próxima à de sua esposa, apresentada numa genealogia sem qualquer indicação de ancestralidade. Sarai não tem pai. É uma filha de ninguém. Exatamente o que Abraão passaria a ser.
A mesma expressão Lech Lecha reaparece em Gênesis 22 como uma espécie de revisitação do drama da primeira partida. Contudo, há uma mudança de perspectiva. Se por um lado, em Gênesis 12, Abraão deve se desenraizar de seu passado, em Gênesis 22, Abraão deve se desligar de sua única conexão com o futuro: Isaque, o filho da promessa. Ao matar Isaque, Abraão mataria sua descendência, sua promessa e sua história. Abraão sofreria um tipo de “esterilidade”, o que novamente traz a lume a imagem de Sarai: a mulher que era estéril e não podia ter filhos.
E é nesse contexto dramático que o verbo ra’ah assume o papel de criar: expectativa, conflito e resolução.
No primeiro caso o patriarca deve sair de casa por um motivo: uma terra que lhe será mostrada (ra’ah). O verbo “mostrar” está no modo incompleto, o que indica uma ação que é de natureza não-realizada ou inacabada. Ou seja: o que Abraão pode ter por certo é que há uma terra, e que esta lhe será mostrada; contudo, sua extensão, sua natureza ou ainda o momento em que esta terra lhe seria mostrada permanecem no completo escuro. O verbo ra’ah aqui gera uma expectativa que só o desenrolar da história poderá realizar.
Quando pela segunda vez DEUS fala a Abraão, o verbo ra’ah reaparece com outra nuance. Se, antes, o verbo indicava uma terra que DEUS lhe mostraria, desta vez, ele indica não uma terra, mas o próprio DEUS enquanto matéria de revelação. “Deus apareceu a Abraão” Gênesis 12:7. A ideia é reforçada pela reação de Abraão em construir um altar ao DEUS que lhe aparecera (repetição do verbo). E é significativo notar que o objetivo desta teofania também guarda uma relação intrínseca com a terra prometida do verso 1. DEUS aparece (ra’ah) a Abraão para confirmar a posse da terra que lhe seria mostrada. DEUS promete dar (natan) a terra à descendência de Abraão. Deste modo, a expectativa é intensificada, pois a terra que antes seria apenas mostrada agora será dada à sua descendência.
O verbo ra’ah aparece ainda no refrão: “levantar os olhos e ver” que só no livro de Gênesis se repete 13 vezes; todas em conexão com a família de Abraão. Ló, Isaque, Rebeca, Jacó, Esaú, os irmãos de José e José. Todos estes levantam seus olhos e vêem uma variedade de objetos e pessoas. Só com o próprio Abraão a expressão ocorre em 4 momentos, 2 destes no dramático capítulo 22, momento do clímax da narrativa abraâmica. Estes momentos desempenham, respectivamente, os papéis de conflito e de resolução final da história.
Depois de jornadear por três longos dias, Abraão “levanta os olhos e vê (ra’ah) o lugar ao longe.” O verbo ra’ah está lexicalmente escrito num modo que resulta numa ação consumada/completada. A ação é concreta; ele vê o lugar. O que de acordo com Gênesis 22:2, deve ser um monte na terra de Moriá. O contraste é evidente. Enquanto a terra (a promessa que o fez sair da casa do pai) está no mais pleno intangível, a morte do único filho é uma realidade concreta, palpável, próxima. DEUS parece ter tornado o alcance da promessa algo intangível com a mesma intensidade em que tornara seu esfacelamento algo inevitável. Essa pungente realidade é melancolicamente registrada num anúncio de enredo presente no verso 1 do capítulo 22: “pôs Deus Abraão à prova”. Parece apropriado portanto, que a primeira pessoa a ser provada (nissah) na bíblia, seja também a primeira pessoa sobre a qual se diz ser possuidora de amor (um amor de caráter paternal). Abraão ama (ahav) Isaque, mas deve matá-lo.
No único diálogo entre pai e filho que se passa no monte (e em toda a narrativa), Isaque pergunta ao pai: “Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” Gênesis 22:7. É importante destacar que a pergunta foi feita num contexto em que apenas duas pessoas conversavam. Isaque pergunta a seu pai. Abraão contudo, não responde por si. “Respondeu Abraão: Deus pro(verá) –ra’ah– para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto […]” Gênesis 22:8. Contida nesta resposta está a incapacidade de Abraão em prover (literalmente ver) um cordeiro para si. Do contrário ele não teria fugido à pergunta e teria falado em seu próprio nome. O verbo ra’ah aqui está novamente no modo incompleto, indicando mais uma vez uma realidade intangível e não palpável. Se é que DEUS pro(verá) um cordeiro, não há nada visível que o indique.
O verbo ra’ah pela segunda vez adquire uma característica de uma ação concreta/concluída. Abraão levanta os olhos e, desta vez, vê não o monte que certamente indicaria a morte de seu filho, mas justamente aquilo que representa a maior certeza de que seu filho viverá: “Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos.” A tensão de todo capítulo chega ao clímax –o que é indicado pela partícula hineh (e “eis” um cordeiro) sempre presente em momentos de resolução de uma grande tensão.
“E pôs Abraão por nome àquele lugar O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até ao dia de hoje: No monte do SENHOR se proverá.” (Gênesis 22:14) O verbo ra’ah aqui aparece duplicado no já explorado modo incompleto. O Bereshit Rabba (um comentário rabínico) explora uma possível implicação teórica quanto ao verbo ra’ah que aparece no modo incompleto por pelo menos três vezes em Gênesis 22. Segundo o comentário, “Yireh” e o nome da região de Salém (Gênesis 17) se fundem para ser a raiz etimológica da palavra “Yerushalayaim”: Jerusalém, de modo que esta cidade portaria no seu nome a consciência de um DEUS que vê.
Por quatro vezes Abraão:
Levanta os olhos e vê
Levanta os olhos e vê
Levanta os olhos e vê
Levanta os olhos e vê
Para desaguar no clímax de uma história cuja resolução é a não-visão. E é justamente a não-visão humana que conduz ao monte e a uma Jerusalém ainda intangível, onde só o Eterno é quem de fato pro(vê).
Breno Bastos