#166

As “palavras de Amós” (1:1) são marcadas pelo sofisticado uso das raízes שׁוב (šwb) e הפך (hapak) e pela exaustiva repetição da sentença “assim diz” כֹּ֚ה אָמַ֣ר (kō ʾāmar) –um total de 15 aparições em todo o livro. Esta expressão figura mais de 480 vezes na Bíblia Hebraica e usualmente tem como sujeito יהוה (yhwh). Ela recebe o nome de fórmula do mensageiro em razão da proposição formal “assim diz o rei” כֹּ֚ה אָמַ֣ר הַמֶּ֔לֶךְ ‎(kō ʾāmar hammelek) praticada pelos arautos que eram enviados (šlḥ) a representá-lo (ver 2 Reis 1:11).

 

As 8 primeiras ocorrências seguem uma estrutura homogênea. Elas estabelecem uma progressão de intensidade às advertências de juízo a Damasco, Gaza, Tiro, Edom, Amom e Moabe, tendo por clímax Judá e Israel. Entre os vários marcadores repetidos, está a raiz שׁוב (šwb) “voltar, volver, virar-se”, apresentada aqui na forma causativa לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ (lōʾ ʾăšîbennû), literalmente: “não o farei voltar [castigo implicíto]”. Segue-se, portanto, a seguinte estrutura: “Assim diz o Senhor […] não retirarei (farei voltar) o castigo […]”:

 

1:3 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
1:6 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
1:9 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
1:11 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
1:13 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
2:1 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
2:4 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃
2:6 כֹּ֚ה אָמַ֣ר יְהוָ֔ה […] + לֹ֣א אֲשִׁיבֶ֑נּוּ […]׃

 

Ao final do capítulo 2 e início do 3 temos o resultado da progressão: o juízo incide agora com exclusividade sobre os “filhos de Israel” בְּנֵ֣י יִשְׂרָאֵ֑ל (bĕnê yiśrāʾēl). A partir deste momento, não há mais homogeneidade. A fórmula do mensageiro, que até então seguia em um ritmo definido, passa a receber diferentes composições que aparentemente não formam nenhum padrão unificado (3:11, 12; 5:3, 4, 16; 7:11; 7:17).

 

É possível que esta mudança de fluxo, continuidade > descontinuidade, represente o movimento do juízo sobre Israel. Em outras palavras, o juízo, identificado com a coesão vertical dos elementos repetidos, atinge sua intensidade máxima em seu destino final –Israel– e, neste instante, se estilhaça em unidades textuais aleatórias condizentes com o caos moral de um povo que “não sabe fazer o que é reto” (3:10).

 

Contudo, na ausência da fala de DEUS, um padrão da parte de Israel se mantém; um que performa o divino. Se de 1:3 a 2:6 o Senhor “não volta” לֹא שׁוב (lōʾ šwb), de 4:6 a 4:11 Israel também “não volta” לֹא שׁוב (lōʾ šwb). Em outras palavras: DEUS faz voltar, mas Israel não quer voltar-se. Trata-se de um recurso sutil de ironia, posto que a obstinação de Israel está descrita nos mesmos termos da ação divina precedente. A constante que se segue é: “[…] e contudo, não vos voltastes [convertestes] até mim” (wĕlōʾ-šabtem ʿāday):

 

4:6 ‎ וְלֹֽא־שַׁבְתֶּ֥ם […]׃ […]
4:8 ‎ וְלֹֽא־שַׁבְתֶּ֥ם […]׃ […]
4:9 ‎ וְלֹֽא־שַׁבְתֶּ֥ם […]׃ […]
4:10 ‎ וְלֹֽא־שַׁבְתֶּ֥ם […]׃ […]
4:11 ‎ וְלֹֽא־שַׁבְתֶּ֥ם […]׃ […]

 

Estrategicamente no final desta nova progressão (4:11), está o papel da raiz הפך (hpk), precisamente ambíguo para o momento: “converter, subverter, destruir”. É a mesma palavra utilizada em Jonas 3:4 para indeterminar a real condição de Nínive na profecia: convertida ou destruída? O leitor é quem decide!

 

Já aqui, o sentido parece ser o seguinte: se Israel subverte a ação divina de voltar, DEUS subverte Israel para que volte. Ainda que para isso, subverter signifique destruir “como DEUS subverteu a Sodoma e Gomorra”. No entanto, o padrão que se segue como resposta de Israel é precisamente o mesmo de antes: performar o divino. Como se vê:

 

4:11 – Deus הפך (hpk) Israel
5:7 – Israel הפך (hpk) o direito em veneno
5:8 – Deus הפך (hpk) a manhã em sombras
6:12 – Israel הפך (hpk) o direito em veneno
8:10 – Deus הפך (hpk) festividade em luto

 

O texto se encerra com redobrado contraste, que se encontra sobretudo na quantidade e movimento entre o הפך (hpk) de DEUS e o de Israel. Aquele dinâmico, este completamente estático. Israel insiste em “subverter o direito em veneno” a despeito das diversas tentativas de DEUS subvertê-lo.

 

E é assim que, finalmente, somos confrontados com a atualidade dessas palavras. A realidade de tensões (continuidade-descontinuidade; coesão-caos; movimento-inércia; divino-humano) que se costuram no tecido da ironia que nos serve de capa todos os dias. Carregam em si a denúncia de um povo cuja única conversão é a da causa social em amargura, e desmascaram uma religião de performances, que se faz no barulho de cânticos (5:23) e no silêncio da Palavra de DEUS.

 

 

Bruno Bastos