Conforme já observado no texto #89, o livro de Jonas se destaca entre a literatura profética pela grande medida no uso do recurso da ironia. Elaborada com a intenção de ser reconhecida, a ironia constantemente convida o leitor para participar de sua percepção e construção. Dessa maneira, este recurso exige uma relação bem próxima entre o leitor e o texto, tornando o leitor em um participante ativo na história.
De forma geral, a ironia é composta por alguns requisitos básicos que facilitam seu reconhecimento; neste texto destaco o elemento da “oposição”. A oposição é, basicamente, incongruência articulada na distinção entre o que se espera e o que realmente acontece. E, claro, para o leitor atento, as incongruências não passam despercebidas. A seguir algumas delas:
Apesar de o livro já iniciar com uma série de expectativas frustradas, oposições e contrastes, a resposta de Jonas ao capitão do navio chama à atenção por ser a primeira fala do profeta no livro. Até então ele havia iniciado uma série de ações para “fugir da presença do SENHOR” (1:3), mas nada havia sido dito por ele. No entanto, em meio à sua fuga, sua primeira fala é: “Sou hebreu e temo ao SENHOR, o Deus do céu, que fez o mar e a terra” (Jonas 1:9).
Se não fosse pelo contexto, que linda profissão de fé! Jonas no meio da tempestade, entre os pagãos, dá seu testemunho. Declara pertencer ao povo escolhido e crer na onipotência de DEUS e em seu domínio sobre terra e mar. Contudo, esta declaração soa completamente estranha aos olhos do leitor que tem acompanhado o profeta desobediente.
E as incoerências continuam: no capítulo 2, Jonas ora ao SENHOR e no ventre do peixe ele culpa a DEUS por estar naquela situação: “Pois [tu] me lançaste no profundo, no coração dos mares[…]” (2:3). E para enfatizar sua inocência, ele utiliza no verso 4 o verbo (גָּרַשׁ) na voz passiva (nifal): “Eu tenho sido lançado de diante dos teus olhos”. Mas os marinheiros que lançaram Jonas ao mar não o haviam feito conforme o pedido do profeta?! (Jonas 1:12)
Em 4:2 Jonas finalmente revela o motivo de ter fugido da incumbência divina (1:2). Ele declara conhecer o caráter gracioso de YHWH e repete quase na íntegra os 13 atributos divinos presentes em Êxodo 34:6-7. O leitor familiarizado com as Escrituras se lembra que naquela ocasião (narrativa de Êxodo 32-34) DEUS revelara Sua graça a fim de garantir a Moisés e ao povo o Seu perdão após a quebra da Aliança recém estabelecida no Sinai. Todavia, na boca de Jonas acontece uma inversão trágica. A revelação do caráter gracioso de YHWH, que outrora fora motivo de louvor, se transforma em acusação ao próprio DEUS (por ter Ele perdoado a cidade de Nínive); os 13 atributos tomam a forma de justificar visão estreita do profeta e são o motivo para sua ira descontrolada – “é melhor morrer do que viver”. Que profeta é este?
A esta altura o leitor já identificou: Jonas é o alvo da ironia. O autor cuidadosamente compõe um personagem que, apesar de se envolver em contradições grotescas, segue o curso dos eventos sem estar consciente de sua hipocrisia. Um personagem cuja confissão religiosa está em nítido contraste com sua forma de vida. Jonas é um anti-profeta, um “profeta” disfuncional que assume um papel completamente inverso do que deveríamos esperar. Não é sem razão que o autor nunca chame Jonas de profeta, talvez, fortalecendo ainda mais sua crítica ao modus operandi da religiosidade de Jonas.
Quando no diálogo final esperamos que Jonas finalmente concorde com DEUS, reconheça seu erro e volte-se de sua impiedade para com os ninivitas, nos surpreendemos. Como se não bastassem as ironias, que constantemente nos convidam a participar do texto, o livro termina com uma pergunta (4:11).
O clímax de toda a narrativa deságua numa inversão inesperada. No final da história os papéis se invertem e nós, os leitores, somos colocados na posição de Jonas, pois ao termos de responder à pergunta divina o texto revela algo inovador a nosso respeito.
Aquele a quem eu possa ter ridicularizado por sua hipocrisia; aquele de quem caçoei por tentar fazer de DEUS o responsável pelas próprias tragédias; aquele com quem me indignei por ter usado a revelação de DEUS de forma equivocada para justificar-se; aquele Jonas, sou eu.
O personagem Jonas figura, de incontáveis maneiras, nossas próprias contradições. E negar isto, ironicamente, só nos aproxima ainda mais do Jonas inconsciente. Ao negarmos esta realidade, nos privamos da oportunidade de entrar em contato com nossas próprias hipocrisias, perpetuamos o ciclo da auto-enganação, do falso moralismo e seguimos o caminho dos mentirosos que, por crerem em suas próprias mentiras, são incapazes de sequer reconhecerem sua condição e de admitir sua própria maldade.
Luciano da Silva