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“É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?” Gênesis 3:1

 

Gênesis 2 antecipa muitos dos temas que serão centrais na narrativa do capítulo seguinte. Em Gênesis 2, DEUS faz homem, animais e árvores do solo e da terra. Na narrativa da queda em Gênesis 3 animais, humanos e árvores serão personagens principais. Quando DEUS planta um jardim para o ser humano em Gênesis 2 o texto indica algumas peculiaridades importantes para o desenvolvimento da narrativa. Esses detalhes podem parecer, em uma primeira leitura, aparentemente descritivos. O verso 9 indica que “do solo Deus fez brotar toda sorte de árvores agradáveis (do verbo chamad, desejável) à vista, e boas (tov, bom) para alimento.”

 

Gênesis 3 desenvolve a idéia da queda e da introdução do pecado no mundo não como uma ação pontual de Adão e Eva, mas como um processo que inclui inúmeras ações resultando na expulsão do jardim e uma vida longe do ideal divino para o ser humano.

 

Por mais que para muitos o pecado de fato ocorre apenas quando a mulher come do fruto proibido, a narrativa parece indicar uma complexidade maior para o debate e da elaboração do que significa “pecado” em Gênesis 3 (curioso notar, inclusive, que a palavra “pecado” sequer é mencionada).

 

“Pecado” em Gênesis 3, e no decorrer de toda a Bíblia, é um processo. O processo começa no nível epistemológico. Na avaliação de possíveis interpretações da realidade (no caso da narrativa da queda, a palavra de DEUS sobre a árvore e a palavra da serpente). Quando a serpente, contrariando DEUS, indica que o ser humano não morreria ao comer do fruto, Eva novamente inspeciona e avalia a árvore. O verso 6 de Gênesis 3 apresenta uma pausa curiosa. O texto cria uma pausa para indicar o que Eva está vendo. O leitor já sabe que em Gênesis 2:9 todas as árvores eram “agradáveis” à vista e “boas” para o alimento. Mas em Gênesis 3 Eva observa esta árvore, e o texto –assimilando o novo pressuposto de que ela não morreria e seria como DEUS, conhecedora do bem e do mal– sugere uma nova percepção da realidade. O texto diz que “vendo a mulher que a árvore era boa (tov, bom) para se comer, agradável (ta’awa, desejável ou agradável) aos olhos, e desejável (do verbo chamad, desejável) para dar entendimento” ela come do fruto e oferece ao seu esposo.

 

A troca de palavras na descrição das árvores de Gênesis 2 e 3 é interessante. Em Gênesis 2 todas as árvores do Jardim eram boas e agradáveis. Mas após a fala da serpente, após a introdução de um novo pressuposto, uma nova percepção da realidade do mundo externo é introduzida ao Eva reavaliar a árvore.

 

A dádiva divina (árvores boas e agradáveis em profusão) se torna, através dessa nova percepção, mesquinhez divina. O “desejo” que antes atraía a criatura para a dádiva divina do alimento agora é o “desejo” para se obter um “conhecimento” não concedido por DEUS. Árvores agora são vistas como um empecilho para a obtenção de um novo patamar de existência através de um conhecimento que DEUS, de acordo com a serpente, reteve do homem. A idéia implantada pela serpente é a de que DEUS quando diz “sim” e “não”, está, na verdade, privando o ser humano de viver uma existência plena ao negar ao ser humano conhecimento e liberdade.

 

Pecado é um processo. O processo se inicia com a mudança de pressupostos e de percepções da realidade, resultando em ações que causaram e causam uma separação quase irreparável entre Criador e criatura. Separação esta, que é desfeita pelo próprio DEUS, que diante da morte oferece vida; pelo DEUS que como Criador oferece, desde a primeira ordem na Bíblia, liberdade e vida ao ser humano; pelo DEUS que ao dizer “sim” e “não” protege precisamente a vida.

 

As descrições das árvores em Gênesis 2 e 3 indicam que se existe uma maneira correta de interpretar a realidade do mundo externo, que é vivendo em continuidade com aquilo que DEUS estabelece; isto é, com maneira como DEUS descreve a realidade e o nosso lugar na ordem da criação. A arbitragem divina entre o bem e o mal introduzida no jardim e mais tarde na Lei é boa. Ouvir, ver e viver debaixo da arbítrio divino traz, como resultado, vida. O engano da serpente continua o mesmo ainda hoje ao afirmar que obedecer a DEUS e engajar-se em uma vida religiosa resulta no oposto da liberdade, na negação do que de fato é viver. E nós, toda vez que nos distanciamos da Palavra, como Adão e Eva, sucumbimos às constantes mudanças de pressupostos, resultando numa percepção distorcida de DEUS, do mundo, e da experiência religiosa.