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A narrativa do dilúvio está em duas seções dentro do primeiro livro da Bíblia. A primeira parte aparece no final da terceira seção de Gênesis, que se iniciou em Gênesis 5:1 (“Este é o livro da genealogia[1] de Adão”) e compreende uma espécie de anúncio de enredo, terminando em Gênesis 6:8. A segunda parte está na quarta seção de Gênesis, começando em 6:9 e terminando em 9:29.

 

O que conecta uma parte à outra é, obviamente, o personagem Noé. Noé é apresentado duas vezes de maneira breve, antes de se tornar o centro das atenções da narrativa que começa em Gênesis 6:9 (“Eis a história[2] de Noé”). Em sua primeira apresentação, na genealogia de Adão, seu nome é explicado por seu pai, Lameque: “Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o SENHOR amaldiçoou” (Gênesis 5:28).

 

Noé, cujo nome significa “descanso” (da raiz nḥ) carrega a esperança de seu pai de que ele traga descanso da maldição dada por DEUS em Gênesis 3:17-19. Depois dessa primeira apresentação, o estado da terra nos dias de Noé é descrito em Gênesis 6:1-7. Basicamente o que se pode resumir é que havia intensa promiscuidade e violência. A narrativa em Gênesis 6:11-12, por exemplo, ratifica esse estado constante de violência com a construção frasal “estava cheia de violência” e com “pois corrompida está toda carne do seu caminho sobre a terra”.

 

A descrição negativa de Gênesis 6:1-7 culmina numa declaração em que o personagem Noé é novamente introduzido: “E Noé achou graça nos olhos de Deus” (Gênesis 6:8). Essa declaração soa fora de lugar e propósito em seu contexto imediato. Entretanto, muitos explicam que Gênesis 6:8 é o efeito da causa descrita em Gênesis 6:9, onde se lê: “Eis a história de Noé. Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus”.

 

Como Noé era um indivíduo diferenciado, mais justo e íntegro do que todos os outros seres humanos, DEUS o escolheu para construir a arca e reiniciar a humanidade. Basicamente, a escolha divina não é livre, mas direcionada pelas ações e comportamento humano. Se o verso 9 viesse antes do verso 8, quer dizer, se a declaração de que Noé achou graça aos olhos de Deus viesse depois da descrição de seu comportamento, essa seria a conclusão não somente lógica, mas inquestionável do texto.

 

No entanto, é curioso que haja essa inversão. Primeiro Noé acha graça, depois é descrito como justo e íntegro. O jogo paranomástico com as palavras “Noé”, da raiz nḥ, e “graça”, da raiz ḥn, aumenta a relevância de entender o verso 8 isoladamente em relação ao verso posterior (Gênesis 6:9), de outra seção.

 

A frase “achar graça aos olhos de…” ocorre diversas vezes em Gênesis (18:3; 19:19; 32:5; 33:8; 39:7) e ao longo da Bíblia Hebraica. Apesar de carregar um sentido difícil de ser expresso em uma palavra específica, “achar graça” aponta para um favor que, geralmente, é pedido a um superior, ou concedido por um superior sem nenhum mérito aparente, pois a graça é achada ou recebida, não ganhada/adquirida. Portanto, a ênfase não está em Noé, mas em DEUS. Não é que Noé seja o campeão do vestibular divino e merecedor da tão sonhada vaga na arca. É DEUS concedendo a ele um favor baseado na Sua graça. O mérito de Noé deriva precisamente de aceitar e viver sob esta graça.

 

A expressão final que o descreve em Gênesis 6:9 cria um eco importante: “Noé andava com Deus”. Um personagem anterior, Enoque, é descrito nesses exatos termos (Gênesis 5:22, 24). Enoque e Noé estão em paralelo. A graça recebida de DEUS se derrama em uma vida andando ao Seu lado. A graça me é concedida imerecidamente, mas por causa dela, passo a andar com DEUS. A clareza desse raciocínio aparece na narrativa logo após o dilúvio.

 

DEUS traz sua justiça dura e definitiva sobre toda a carne, levando à morte todos os seres vivos. O caráter definitivo desse juízo é enfatizado pelo uso de três verbos para morte seguidos por três descrições do que morre (Gênesis 7:21-23). A violência e a promiscuidade são julgadas e condenadas por DEUS e ELE pune a maldade sobre a terra com morte.

 

Noé, sua família e os animais dentro da arca estavam a salvo e são os sobreviventes desse evento cataclismático (Gênesis 7:23). Noé, o justo e íntegro, e sua família.

 

Após o final do dilúvio, ao saírem da arca, DEUS novamente ordena, como no principio, que eles sejam fecundos e encham a terra (Gênesis 1:28 e 8:17). Noé sai da arca com sua família e a primeira coisa que ele faz é oferecer sacrifícios a DEUS (Gênesis 8:20). Ele levanta um altar e oferece animais puros como oferta queimada. Noé, justo e íntegro, adora a DEUS com diversos sacrifícios. A cena faz total sentido com a descrição de Noé em Gênesis 6:9.

 

Mas, a narrativa diz: “E o SENHOR aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade…” (Gênesis 8:21). Essa fala não faz sentido com a descrição de Noé em Gênesis 6:9. Ao adorar com sacrifícios, DEUS enxerga nele o mesmo que via na humanidade antes do dilúvio, inclusive com as mesmas palavras (Gênesis 6:5): má é a imaginação do homem.

 

O justo e íntegro Noé, descrito por DEUS da mesma forma como os cidadãos pré-diluvianos. Pode parecer estranho, mas faz total sentido em relação à descrição de Noé em Gênesis 6:8.

 

A graça é não somente anterior à integridade e justiça de Noé, como também aquilo que o torna diferente dos seus concidadãos. Ele e eles são maus, mas Noé “acha” graça e vive por ela.

 

O juízo da história do dilúvio não vem através de Noé. O juízo vem de DEUS.

 

Muitos lêem Mateus 24:37-39 e acham que se portarem como Noé é trazer “dilúvio” sobre os pecadores, com suas enxurradas de posts coléricos contra violência e promiscuidade, apontando a maldade do homem.

 

Esquecem, no entanto, que enquanto adoram a DEUS, ELE olha e nos vê a todos do mesmo jeito: maus.

 

Muitos acham que o juízo virá das ações violentas e não violentas que “justos e íntegros” –os cidadãos de bem, que prezam pela família– promovem contra os violentos e promíscuos “do mundo”.

 

Esquecem que o juízo não é obra de mãos humanas e que o “justo e íntegro” Noé é salvo pela graça e por viver por ela.

 

Por mais que você se ache justo e íntegro em sua comunidade, não esqueça, você é mau como todos. Você não pode ganhar a graça pelo que acha que é e/ou faz. Ela é concedida por DEUS; e é para todos.

 

Por mais que você se ache um justiceiro a mando de DEUS para trazer “dilúvio” sobre a maldade, não esqueça: somente ELE faz juízo perfeito e o executa no tempo certo e do jeito correto.

 

 

 

[1]  Vários estudiosos entendem que a palavra tôlĕdôt (traduzida como “genealogia” ou “gerações”) divide o livro de Gênesis em 12 seções, sendo que Gênesis 1:1-2:3 seria a única que não começaria com essa palavra.

 

[2]  Aqui a palavra em hebraico é, exatamente, tôlĕdôt, ou seja, o início de uma nova seção. A seção é centrada em Noé e sua história com Deus.