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“Vendo as multidões, teve grande compaixão delas, porque andavam cansadas e desgarradas, como ovelhas que não têm pastor.” Mateus 9.36

 

Nos últimos textos temos tratado da recorrente questão da falta de misericórdia, da falta de paciência, e de uma religiosidade que, embora se proponha altos ideais, na prática, deixa a desejar. Neste ano de 2017 são muitos os que celebram os 500 anos da Reforma Protestante, contudo, a junção de uma certa frustração religiosa com essa celebração gera sentimentos mistos e acaba produzindo em nós uma certa estranheza. Estranheza, porque o distanciamento do texto, dos conceitos e de uma visão verdadeiramente bíblica é tamanho que a celebração da Reforma é equivalente à celebração de um divórcio. A postura de algumas lideranças religiosas e de pregações em tom “profético” só agrava a situação. Por isso, ao celebrarmos a herança da Reforma, vale a pena ponderar alguns versos de Mateus 23, na tentativa de resgatar justamente o que dia após dia está sendo esquecido e perdido. Observe como cada frase de Jesus é carregada de relevância para os nossos dias de frustração e celebração.

Verso 1: “Então falou Jesus à multidão, e aos seus discípulos…” O discurso inteiro será contra a postura dos líderes religiosos da época, porém é dirigido à multidão que seguia Jesus e aos seus próprios discípulos. O discurso é para as “ovelhas sem pastor” (ver Mateus 9:36 e Jeremias 23:1-6). Pessoas que, como Jeremias antecipa, seriam alvo da negligência de pastores.

Verso 2: “…dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus.” O assento de Moisés, obviamente, não é literal, mas figurativo. Moisés mesmo nos tempos de Jesus era tido como o principal legislador de Israel e o portador da revelação divina assim como sua correta interpretação. De acordo com Jesus, algo que na época não era novidade, os escribas (estudiosos das Escrituras treinados formalmente nos seminários teológicos da época) e fariseus (observadores da Lei e membros leigos da comunidade religiosa) se assentavam na cadeira de Moisés. Eles eram os novos responsáveis pela Lei e por sua correta interpretação. Jesus sabia disso. O povo sabia disso.

Verso 3: “Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as, mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem.” A primeira crítica de Jesus tem de ver com a evidente discrepância entre discurso e vida. Jesus porém, não questiona a leitura deles. O que eles dizem sobre a Lei está correto. Mas a aplicação deles em suas respectivas formas de vida é que está incorreta. Suas obras não acompanham seu discurso. O reverendo Eugene F. Rivers III disse bem: “se professamos seguir a Jesus, toda nossa fala precisa estar indizivelmente conectada a todas as nossas ações. Se não existem ações, então toda fala é insignificante.” O erro fundamental dos fariseus e escribas: uma distinção radical entre discurso e vida. E todas as observações que seguem no discurso de Jesus são um resultado desse problema fundamental.

A sequência de erros é tão trágica quanto é relevante:

Erro 1: “Atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los.” Estes líderes religiosos negligentes exigem uma experiência religiosa dos outros que eles mesmos não seguem. Transformam o cisco no olho do outro em trave, e a trave em seus próprios olhos transformam em cisco. São mais duros com o pecado alheio do que com sua própria condição.

Erro 2: “Fazem todas as obras para serem vistos pelos homens, e amam os primeiros lugares nas ceias, e as primeiras cadeiras nas sinagogas, e amam as saudações nas praças e o serem chamados pelos homens, Rabi, Rabi.” Aqueles que carregam esta incoerência entre discurso e vida, que atam fardos nos outros, são, de acordo com Jesus, aqueles que amam serem vistos. Para estes, a boa imagem precede qualquer outra virtude. O que está na superfície e aparece para os outros é o que mais importa. Sua importância está na aparência, na posição –e consequentemente no reconhecimento– diante dos homens, nos títulos. Eles amam títulos. Aparência, posição, e títulos são exatamente os fatores que os distinguem do restante das ovelhas. Da massa, dos “reles mortais”. Sem aparência, posição e títulos, não lhes resta nada.

Jesus conclui este duro discurso para as ovelhas e seus discípulos convidando-os as a não serem como os fariseus e os escribas. Jesus conclui o discurso para ovelhas convidando-as a executarem uma justiça, uma virtude, uma religião que excede à dos escribas e dos fariseus. E em troca, Jesus os convida a abraçarem o serviço e a humilhação própria.

Mas e hoje em dia; o que fazemos? Institucionalizamos exatamente o que Jesus rejeitou! Nos distinguimos por aparência, posição e hierarquia (quer seja eclesiástica ou meramente nas plataformas das igrejas e congregações) e títulos; queremos que os outros sejam tratados e julgados à risca da Lei, mas para nós mesmos pedimos misericórdia. E ao executarmos tudo isso com reverência, zelo e devoção mostramos a verdadeira essência de nossa religião: discrepância entre discurso e vida.

É importante compreendermos que a verdadeira discrepância entre discurso e vida não consiste em não sermos capazes de viver à altura dos nossos ideais e de nossos discursos. Afinal, “Todos pecaram e carecem da glória de Deus.” (Romanos 3:23) Nem por isso precisamos “aliviar” o padrão moral de DEUS. Não precisamos ou devemos deixar de falarmos aquilo que, à luz da Palavra, é certo e errado. A grande questão é que, geralmente, quando “chamamos o pecado pelo nome” fazemos pelo menos 3 coisas: a) chamamos sempre o pecado dos “outros” pelo nome, nunca o nosso; b) falamos destes “outros” e de seus pecados raramente mencionando que nós, também, somos tão pecadores quanto eles, distanciando-nos destes pecadores, como se nós não o fôssemos (ou pelo menos não tanto quanto eles); e c) falamos do pecado alheio sem misericórdia, aumentando o fardo e o peso sobre eles, enquanto para nós e os “nossos” nós aliviamos.

Esses discursos frequentemente também vêm acompanhados da noção de causa e efeito e de meritocracia, como se nossa conduta, nossos hábitos, aquilo que fazemos ou deixamos de fazer –mesmo que apenas em pequena escala e não em relação à salvação propriamente dito– nos fizesse mais ou menos merecedor do que outro grupo de pessoas cujo pecado é diferente do nosso (sempre o dos outros é mais grave).

O que nos resta é ponderar as palavras de Jesus em Mateus 23 e celebrar o grande divórcio entre a Igreja atual e a Reforma, entre a religião de hoje e a religião de Jesus. E lembrarmos que, se existe uma saída desse buraco, ela se encontra no serviço e na humilhação. Duas coisas que estamos acostumados a evitar com reverência e devoção, pois hoje em dia até o nosso serviço e orquestrada humilhação são executados para exaltação individual.

Feliz 500 anos da Reforma!