#153

Quem cresceu em um ambiente religioso, conhece a história de Jonas com certa clareza. O profeta de DEUS que recebe o chamado para ir pregar em Nínive, cidade dos maus, violentos e perversos assírios. Ele resolve desconsiderar o chamado divino e fugir para outro lugar. No caminho, DEUS envia uma tempestade e Jonas, sabedor de que se tratava de uma intervenção divina para que ele cumprisse a missão dada, prefere ser jogado ao mar, no meio da tempestade; Jonas prefere morrer a cumprir a missão.

 

Dentro do animal que o engole no mar, Jonas ora. Sua oração é bonita, recheada de belas palavras e referências ao Templo e ao poder de DEUS, mas sem menção de arrependimento ou pedido de perdão. Na verdade, sua última frase nessa oração é curiosa: “Os que se apegam aos ídolos vãos; afastam de si a sua própria misericórdia.” (Jonas 2:8). Essa frase aponta para o que Jonas continuava achando dos ninivitas, que eram idólatras: não mereciam misericórdia. O profeta sabia que a mensagem de destruição que ele deveria levar a Nínive indicava que Deus ainda lhes concedia misericórdia (ver Jeremias 18), mas, a seu ver, eles não a mereciam.

 

Misericordiosamente, DEUS ordena ao animal que vomite Jonas na terra. O verbo usado para “vomitar” (qyʾ) é raro, ocorrendo poucas vezes na Bíblia Hebraica. Quando usado, ele se refere a bêbados ou glutões vomitando (que não parece ser o caso aqui) ou a própria terra vomitando (Levítico 18 e 20). No contexto da terra, ela vomita pecadores que a contaminam. O contexto de Jonas é a única ocorrência em que este verbo específico se refere a um animal vomitando, e chama à atenção que, no restante das Escrituras, o verbo tenha uma conotação tão negativa.

 

Jonas é instado por DEUS a ir de novo a Nínive pregar. Dessa vez ele vai e sua pregação surte um efeito incrível, levando toda a cidade ao arrependimento. O próprio Jonas não gosta do que acontece. Diz o texto bíblico: “E ficou desgostoso Jonas […] e ficou irado”. O mesmo verbo para ficar irado aparece em uma construção semelhante em uma outra história similar, Caim e Abel. Em Gênesis 4, a narrativa diz que Caim ficou muito irado porque sua oferta não foi aceita e a de seu irmão foi (veja os textos #60 e #44 a respeito dessa história). Caim fica irado num contexto de adoração, pois seu irmão foi aceito por DEUS e ele não. Jonas, de igual modo, fica irado porque DEUS foi misericordioso com Nínive. Em ambos os casos, há a “não aceitação” do favor divino em prol de outrem.

 

Em dois contextos religiosos distintos, personagens ficam irados por DEUS ser favorável a alguém (ou a um jeito de adorar). A ironia das duas histórias é que Deus demonstra misericórdia para com os não misericordiosos. Jonas havia sido salvo da morte e da barriga do animal; Caim recebe uma marca para não ser assassinado e poder viver em paz.

 

Talvez o que ilustre melhor a atitude de Jonas seja a atitude dele em comparação a do rei de Nínive. Ao receber a mensagem divina através de Jonas, o rei se assenta no chão (Jonas 4:6), sob pano de saco e cinzas, e age para que haja real arrependimento e consequente salvação para todo seu povo (Jonas 3:7-9). Já Jonas, se assenta numa espécie de cabana e fica esperando, torcendo, para que Deus destrua a cidade (Jonas 4:5). O profeta de DEUS espera destruição e morte para os pecadores. O profeta de DEUS torce e almeja que os pecadores sejam destruídos. O profeta de DEUS se assenta para assistir tudo de camarote. Já o rei pagão, pecador, se assenta e clama a DEUS, instando seu povo a clamar também, para que recebam misericórdia de DEUS. O rei pagão está preocupado com a salvação não só sua, mas de todo seu povo.

 

Nos tempos em que vivemos, os profetas de DEUS como Jonas se proliferam. Querem receber misericórdia, mas querem que os pecadores sejam destruídos sem dó. Vários Jonas estão espalhados por aí escrevendo em nome de DEUS condenações a artistas, bancos, museus, etc. Assentados em suas cabanas, esses Jonas de hoje anseiam a destruição dos pecadores. Disparam suas palavras de ódio contra homossexuais, imigrantes, muçulmanos, políticos de certo espectro ideológico, gente de outras religiões, na esperança de que DEUS, ouvindo seu clamor, destrua logo esses pecadores e salve aos “justos” e “fiéis” (eles próprios).

 

Ironicamente, como Jonas, os que recebem misericórdia, não aceitam e não querem que outros a recebam.

 

Há Cains e Jonas, religiosos, irados por toda parte.

 

Mas há um DEUS misericordioso sobre todos. Louvado seja Seu Nome.