Outro componente essencial do estudo da narrativa bíblica é sua estrutura. A maioria das narrativas aparece estruturada com os seguintes elementos[1]: (a) resumo; (b) orientação; (c) ação complicadora; (d) avaliação; (e) resolução; e (f) coda.
No livro de Rute, por exemplo, a narrativa se inicia com algumas frases que resumem toda a história. Estas frases servem para apresentar, de forma condensada, a respeito de que a história trata. Aparentemente, não vemos isso no livro de Rute, mas “Depois dessas coisa, pôs DEUS Abraão à prova […]” (Gênesis 22:1) é um exemplo.
A orientação é onde tempo, lugar, e pessoas da narrativa são identificados. No início do livro de Rute encontramos este tipo de orientação: “Nos dias em que julgavam os juízes […]”(Rute 1:1). Apesar de, para leitores modernos, esta introdução possa parecer um indicativo de que a intenção do livro é ser histórica, na verdade, isto está unicamente colocando a história em um contexto temporal. Deste modo, o narrador se distancia da história e conduz o leitor à estrutura temporal em que a história ocorreu. Apontar exatamente em que momento na história dos juízes isto aconteceu é uma preocupação moderna. Na história não vemos indicações de uma data precisa. Outro exemplo como “[…] saiu a habitar na terra de Moabe” (Rute 1:1) também poderia ser destacado.
Em seguida, a ação complicadora é o coração da narrativa. Ela narra o que aconteceu e quando aconteceu. Aqui, a sequência temporal dos eventos se torna importante. Normalmente alguns marcadores aparecem para indicar que a ação está iniciando. Este marcador pode ser um indicador temporal (específico [Ester 1:3] ou geral [Juizes 11:4]), ou indicador de ação, como no caso de Rute 1:6 “Então, se dispôs ela […]”. Curiosamente, o verbo קום (qûm – “levantar”; “dispor”) no completo, no início do versículo, também introduz a ação principal em Gênesis 23:3 e Êxodo 1:8, onde, em ambas as situações, aparecem após a notícia da morte de alguém. Em algumas situações, estes marcadores podem aparecer como subdivisões internas na narrativa, introduzindo, assim, um novo episódio (Rute 2:1; 4:1).
A avalição é o que indica o cerne da narrativa, sua raison d’être. Este é o modo do autor permitir com que seu leitor saiba o porquê dele estar contando esta história, porque ela merece ser contada. São várias as formas de avaliação. Todas elas pausam a ação e mudam seu enfoque para uma faceta em particular a fim de que pontos específicos da narrativa sejam destacados e o enredo ganhe sentido e direção. No livro de Rute há muito material avaliativo nos diálogos. Isto sugere que o diálogo não serve somente como um embelezamento para que a apresentação soe mais cênica, mas sim para marcar o que possui papel vital na narrativa. No livro de Rute, notamos uma forma mais sofisticada de avaliação, são os personagens que apresentam-na através de atos ou de palavras. O narrador não fala sobre como Rute é leal a Noemi, ele deixa com que Boaz o diga em Rute 2:11 como também em 3:10-11 onde ele afirma que ela é “mulher virtuosa”.
O resultado diz o que finalmente aconteceu. No livro de Rute, é o nascimento de um filho de Rute e Boaz e Noemi colocando-o no seu regaço. O resultado é o fim da ação, mas não necessariamente o fim do discurso.
Por fim, há uma sinalização de que a narrativa chegou a um desfecho (coda). Para isso, muitas vezes há uma projeção futura para além do tempo do enredo. Algumas vezes para o tempo do próprio escritor, outras para um tempo conhecido do leitor, ou até mesmo para um futuro qualquer. Um dos finais do livro de Rute pode ser visto em Rute 4:14-22, no nascimento de Obed e a genealogia. O livro fecha seu enredo, liquidando as lacunas do início, e apontando para um futuro em um tempo diferente do presente do enredo.
Obviamente, as narrativas bíblicas não estão limitadas a este estilo específico de estruturação. Em algumas, componentes são acrescentados, em outras subtraídos. A questão é que quando percebemos que há uma conexão entre a estrutura e o conteúdo que o autor escolheu enfatizar (em outras palavras, a decisão de organizar a narrativa de uma forma específica), não podemos ignorar a estrutura de qualquer narrativa bíblica. Tal estruturação não é ocasional. É evidente que a Bíblia é muito mais do que mera literatura, mas ela também não é menos que literatura.
[1] Sugestão de Adele Berlin em Poetics and Interpretation of Biblical Narrative.