Dentre os principais componentes de qualquer narrativa, está a composição de seus personagens. Este fenômeno de caracterização não é diferente no texto bíblico.
Para E. M. Forster, os personagens podem ser distinguidos entre os planos e os completos.[1] Os planos são construídos em torno de uma ideia ou um único conceito, sendo que normalmente não apresentam aspectos de sua vida íntima; os completos, por outro lado, são complexos, auto-conscientes, capazes de desenvolvimento e mudança.
No livro de Rute, Noemi, Rute e Boaz configuram tipo de personagens completos retratados de maneira profunda e complexa através de suas ações, discursos e reações. Qualquer história está, ainda, repleta de personagens que funcionam como agentes para que os personagem maiores/completos se desenvolvam na narrativa. Estes personagens secundários não são importantes em si mesmos, mas, sim, na medida em que auxiliam no desenrolar do enredo. Orfa e o potencial resgatador provavelmente sejam os agentes mais importantes, afinal, servem como contraste com Rute e Boaz ao escolherem exatamente o oposto quando confrontados pela mesma opção de escolha.
Obviamente, a caracterização no texto bíblico é muito mais profunda e rica do que esta simples categorização flexível. Contudo, simplesmente a disposição em considerar a análise dos personagens (e sua caracterização) nas histórias bíblicas, por si só, já é capaz de enriquecer a leitura de qualquer um que se aproxima do texto.
Por exemplo, apesar de ser o livro de Rute, Noemi parece ser a personagem principal. Todos os outros personagens aparecem em relação à ela. Somente em Rute 1:2 Noemi é nomeada em relação ao seu marido, Elimeleque, o que é revertido logo na sequência no verso 3 quando o texto diz que “morreu Elimeleque, marido de Noemi”. Outro exemplo pode ser visto em como Rute e Orfa são apresentadas no livro, pois, apesar de serem casadas com os filhos de Noemi, no livro, a relação que realmente se tem a intenção de enfatizar é a das duas com Noemi. Embora Boaz seja da família de Elimeleque, ele é primeiramente mencionado em referência à Noemi: “Tinha Noemi um parente de seu marido” (2:1). E o mais curioso, mesmo a criança nascida como fruto da relação entre Rute e Boaz, aparece no texto em referencia à Noemi em Rute 4:17 onde é dito “A Noemi nasceu um filho”. Isso sem contar Rute 4:14 quando é dito “Seja o SENHOR bendito, que não deixou, hoje de te dar um neto que será teu resgatador”, em referência a Noemi sendo resgatada.
A ideia do escritor é apresentar a história através da perspectiva de Noemi: sua perda, sua solidão, seu retorno à Belém, sua pobreza, sua preocupação quanto ao futuro de Rute, sua visão quanto a Boaz e seu resgate através do nascimento de um neto.
Contudo, há uma diferença entre ponto de vista de perspectiva e ponto de vista de interesse. Do ponto de vista de interesse, o foco repousa em Rute. Rute é o principal interesse de Noemi ao longo da maior parte da história. O leitor almeja saber o que ocorrerá com Rute, mais do que o que ocorrerá com Noemi. Mas, obviamente, isso só é possível por conta de isto também ser o que Noemi almeja. Rute parece estar em todas as cenas, menos a do encontro de Boaz com o potencial resgatador, embora o ponto crucial da conversa seja Rute. Em nenhum momento da história ela deixa de ser “vista”.
Assim, como afirma Adele Berlin: “Por mais que os eventos da história sejam percebidos através do ponto de vista de Noemi, é Rute quem facilita esta percepção de Noemi […] Isto sugere uma técnica narrativa com certa sofisticação; uma na qual uma história pode ser contada sobre um personagem através do ponto de vista perceptivo de outro, e ainda por um narrador onisciente cujo ponto de vista também parece estar presente.” [2]
[1] Yairah Amit, Reading Biblical Narratives, p. 71.
[2] Poetics and Interpretation of Biblical Narrative, p.84.