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A narrativa[1] é a forma predominante de exposição de idéias na Bíblia Hebraica (BH). A BH tem uma história a contar, e, para contá-la adequadamente, faz uso de todo um arsenal de recursos da arte narrativa hebraica: enredo, caracterização, repetição, descrição física, dentre outros. Além disso, bem mais que a metade do Novo Testamento é composta por narrativas encontradas nos quatro evangelhos e em Atos dos Apóstolos. Isso, porque a forma discursiva predominante empregada para transmitir questões de suprema importância no antigo Israel e no judaísmo do 1º século era, justamente, a narrativa. Foi precisamente isso que o próprio Cristo fez em Suas parábolas, simplesmente dando continuidade à tradição já estabelecida na BH, que explorava o poder das histórias.

Este é o tipo de Bíblia que DEUS achou por bem nos dar. Se quisermos ser coerentes com esse tipo de Bíblia, portanto, precisamos lê-la de tal forma que se faça justiça a suas histórias. Como o próprio Laurence Turner afirma, ao invés de apresentar um compêndio com uma série de doutrinas descritas de maneira abstrata, quando Cristo quis ensinar algo sobre salvação, ele disse: “Certo homem tinha dois filhos […]” (Lucas 15:11). E, como vemos através deste recurso, diferentemente da abstração doutrinária que apenas muito dificilmente se pode reproduzir mentalmente, qualquer pessoa consegue repetir a narrativa contada por Jesus depois de ouvi-la apenas uma vez, não importa seu nível social ou cultural.

De acordo com Adele Berlin[2], ironicamente, embora contar histórias seja tão importante na tradição bíblica, não há na BH uma palavra para história. Vemos palavras para cânticos, oráculos, hinos, e parábolas. Contudo, não há uma palavra para descrever a narrativa per se. Ainda assim, no texto bíblico temos abundância de narrativas. Narrativas vibrantes e vívidas que causam um impacto e mexem com todos os ouvintes e leitores. Narrativas importantes, principalmente, devido à dinâmica interna de envolvimento delas mesmas.

As narrativas são importantes porque nós representamos nossa identidade através da linguagem da narrativa. Esta é a melhor ferramenta que temos para capturar a riqueza e até contradições das interações humanas. Ser humano envolve contar e interpretar histórias. Enxergar nossas histórias como parte de histórias maiores. As narrativas provocam a imaginação daquele que as ouve e as lê. Na narrativa há identificação. O leitor/ouvinte se coloca no lugar de algum dos personagens e se envolve com a história em níveis profundos.

Recordar uma história é recordar sua própria identidade. O texto de Deuteronômio 26:1-11 é uma prova clara disso, como já foi abordado no texto #12. Aquele que trazia as primícias da colheita ao Santuário recordava do que DEUS havia feito aos seus antepassados através de uma afirmação: “Hoje declaro ao Senhor teu DEUS que entrei na terra que o SENHOR com juramento prometeu a nossos pais que nos daria.” (verso 2) Mesmo tendo já nascido na terra que DEUS havia prometido (verso 1), sempre, naquela festa, deveria ser dito: “Hoje declaro […] que entrei na terra.” Contar uma história é lembrar de onde venho e quem eu sou.

A verdade sobre as histórias é que elas envolvem tudo que somos.

[1] Este texto é inspirado na série de palestras “Como compreender as Narrativas Bíblicas” apresentada por Laurence A. Turner no UNASP-EC de 11 a 15 de Setembro de 2017. 
[2] Em seu livro Poetics and Interpretation of Biblical Narrative (p.11).