#149

“Aqueles que pensam que há distinção entre santidade e riso, são intelectualmente constipados” – Robert Alper [1]

 

Em um trecho do romance O nome da Rosa, Umberto Eco explora uma temática interessante: a relação entre o humor e religião, ou, talvez, humor e santidade. Tal temática aparece através de dois monges (Jorge de Burgos e Guilherme de Baskerville) que debatem se Jesus riu ou não riu quando esteve na terra. Para Jorge de Burgos o riso é fonte de dúvida, desta forma, não pode ser livremente permitido como meio de lidar com a realidade. Diferente da perspectiva do monge de Burgos, a Bíblia parece trazer muitas situações de humor e riso. Isso se dá não somente através de situações cômicas, como também através de descrições que utilizam do humor. Distante de discursos preocupados em condenar gêneros literários e demonizar a relação da cultura com as Escrituras, o escritor bíblico, da mesma forma que utiliza-se da novela e da tragédia para compor seu livro, faz uso também da comédia. Um exemplo pode ser visto na história contada em 2 Reis 6:8-23.

 

Esta narrativa é contada em 5 estágios: 1o estágio (versos 8-11) – Há informação vaga de que os Sírios estão fazendo guerra contra Israel e acampando em tal e tal lugar. Esta informação apresenta Eliseu na história, que informa ao rei de Israel quais são estes tais e tais lugares. Somente Eliseu sabe quais são os tais e tais lugares. Um toque de humor entra na narrativa quando o rei da Síria, furioso com seus planos sendo frustrados, acusa um dos seus de traição. Isso prepara o caminho para o 2o estágio (versos 12-14) – Para se capturar um homem (o profeta Eliseu), é enviado um exército; 3o estágio (versos 15-18) – O servo de Eliseu entra em pânico ao ver o exercito Sírio. Todavia Eliseu pede para que seus olhos sejam abertos e ele vê o exército de seres divinos que os protegem; 4o estágio (versos 19-20) – Os Sírios perdem a visão e quando voltam a ver, estão no meio de Samaria; 5o estágio (versos 21-23) – Ao invés de aniquilar os Sírios, o rei de Israel, instruído pelo profeta, oferece comida aos seus inimigos.

 

Por meio do jogo irônico de ideias diferentes, o narrador molda a perspectiva do leitor. Isto pode ser visto, por exemplo: (1) no fato de que nem o rei de Israel (Jeorão), nem o rei sírio (Hazael) são nomeados. O único nomeado na história é Eliseu, o profeta de Israel; (2) na relação entre o verbo נגד (“informar”; “anunciar”; “prover explicação”) nos versos 11 e 12. No verso 11 o rei Sírio, desconfiado de traição de um dos seus, pergunta: “Não me fareis saber […]?” (תַּגִּ֣ידוּ – Hifil, incompleto, 2a m.p.). Na sequência, no verso 12 é Eliseu quem “faz saber…” (יַגִּיד – Hifil, incompleto, 3a m.s.); (3) no verso 14 “cavalos, carros e fortes tropas” (סוּסִ֥ים וְרֶ֖כֶב וְחַ֣יִל כָּבֵ֑ד) dos Sírios cercam a cidade para capturar o profeta, enquanto que no verso 17 praticamente a mesma descrição aparece quando o auxiliar de Eliseu enxerga o exército divino que os protege (סוּסִ֥ים וְרֶ֛כֶב אֵ֖שׁ – “cavalos e carros de fogo”); e (4) na relação entre o que envia (שׁלח) o rei Sírio ao saber do profeta (v.14 – וַיִּשְׁלַח – “enviou” cavalos, carros e fortes tropas), e o que envia (שׁלח) Eliseu quando tem o rei Sírio e seu exército em suas mãos (v.23 – וַֽיְשַׁלְּחֵ֔ם – “despediu” os sírios em paz). Ele não somente os despede em paz como também oferece comida.

 

Além disso, vemos um jogo irônico no uso do verbo ראה (“ver”; “enxergar”). O rei sírio comanda seus homens, “Ide e vede onde ele está […] (verso 13 –  וּרְאוּ֙), enquanto o leitor já sabe quem é que realmente as coisas (verso 9). Este verbo possui forte relação com as orações relatadas na narrativa. Na primeira (verso 17), os olhos do auxiliar de Eliseu são abertos; na segunda (verso 18), o exército sírio é atacado por uma cegueira; e na terceira oração (verso 20), esta cegueira é revertida. Somado a isso, temos as ocorrências da interjeição הִנֵּה (“eis” – versos 15,17, e 20) marcando o texto, criando momentos de clímax e tensão. O “ver” é tema central da história. Através desta palavra o texto bíblico trata, com humor, o tema do conhecimento: quem conhece a realidade, e como ela é conhecida. A noção de que a realidade possui outra dimensão que nem Arameus, nem Israelitas conseguem enxergar está presente nesta narrativa.

 

O riso provocado aqui, tanto através da atitude do profeta como através da descrição, reforça a realidade de que muitas vezes quem parece ver age como tolo. Os sírios desempenham o papel patético de serem guiados por quem procuravam. O auxiliar de Eliseu teme o que vê sem conhecer o que não vê. E o rei de Israel, guiado puramente pelo que vê, faz papel de tolo ao não ver a possibilidade de paz à sua frente.

 

Diante desta realidade bíblica, vale o conselho de Amós Oz em seu livro Como Curar um Fanático: “Senso de humor é uma grande cura. Nunca vi na minha vida um fanático com senso de humor […]. O humor inclui a capacidade de rir de nós mesmos. O humor […] é a aptidão de vermo-nos como os outros podem nos ver, é a capacidade de entender que, por mais cheios de razão que estejamos e por mais terrivelmente equivocados que estejam os outros sobre nós, há sempre um certo aspecto disso tudo que é engraçado”. [2]

 

 

 

[1]  Entrevista à revista Shabbat Shalom, vol. 55, no 1, 2008.

 

[2] p. 35.